07 mar, 2019 - 11:32 • Marta Grosso com redação
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A legislação portuguesa ainda considera as crianças como vítimas indiretas da violência doméstica. Daniel Cotrim, responsável pela área da violência de género e doméstica da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) e supervisor das casas-abrigo para mulheres e crianças, defende uma mudança nesta classificação.
“A primeira grande coisa é Portugal deixar de ter na sua legislação a expressão de ‘vítima indireta’. Nós sabemos que as crianças são vítimas diretas da violência doméstica”, afirma na Renascença.
“Não é pelo facto de a violência ocorrer às duas da manhã e os pais acharem que os seus filhos estão a dormir que no dia a seguir eles não descobrem”, alerta o especialista. “Percebem os restos da violência do dia anterior ou da noite anterior pela porta partida, pela mãe mais deprimida, pelo pai com pouca disponibilidade…”
Este psicólogo considera, por isso, que “é fundamental que as crianças sejam ouvidas, até porque isso é que é o verdadeiro superior interesse da criança”.
Convidado do programa As Três da Manhã, Daniel Cotrim defende ainda que as crianças “sejam ouvidas nos processos de regulação das responsabilidades parentais. E ainda são muito pouco ouvidas”.
Neste momento, estão nas casas-abrigo da APAV “mais de 40 pessoas, sendo que mais de 60% são crianças e jovens”, revela.
“Eu costumo dizer que, por cada mulher que entra, vão com elas duas crianças. Da mesma forma que, por cada mulher que é assassinada, ficam órfãos em média duas crianças. É um flagelo e estes efeitos colaterais não podem ser esquecidos”, destaca o responsável.
Aplicar a lei como deve ser
Nesta matéria, os tribunais têm um papel muito importante, mas só há pouco tempo é que começou a haver alguma sensibilidade e sensibilização por parte dos magistrados para perceberem o que é que as crianças querem, diz Daniel Cotrim.
"Elas são especialistas em questões de risco e segurança porque conhecem muito bem quais as dinâmicas daquele relacionamento abusivo entre o pai e a mãe", defendeu em entrevista à agência Lusa, acrescentando que as crianças e jovens conhecem "os gatilhos" e os momentos em que o risco aumenta.
O responsável da APAV realça ainda outra incongruência da justiça portuguesa: o Tribunal Criminal decreta uma medida de afastamento e de proteção da vítima de violência doméstica e dos filhos e o Tribunal de Família e Menores decreta um período de visitas do progenitor agressor aos filhos.
"Isto é muito difícil de gerir e é sobretudo muito difícil de explicar às vítimas. Como é que o mesmo Estado ou a mesma justiça que me quer proteger, ao mesmo tempo me desprotege e me coloca numa situação de risco?", questiona.
Na Renascença, Daniel Cotrim defende que, mais importante do que adotar medidas inovadoras, é importante aplicar a legislação já existente.
“Tem que se avaliar muito bem qual o grau de risco a que as vítimas ficam expostas. A legislação portuguesa tem desde 2009, reforçadas em 2015, um conjunto de medidas muito assertivas para a proteção das vítimas e essas sim, são fundamentais, que sejam aplicadas eficazmente”, afirma.
Daniel Cotrim considera que as pensas existentes “são adequadas”, mas “a forma como a justiça é aplicada não é adequada nem eficaz”.
Como exemplo, o psicólogo dá a aplicação de uma medida de proteção à vítima.
“Existe um grande número de mulheres que realmente fizeram denúncia, mas que, no momento em que pedem uma medida de proteção – a tal medida que deveria ser aplicada em 72 horas e que existe na nossa lei desde 2009 – continua a demorar três a seis meses a ser aplicada. E aquilo que nós sabemos é que, quando olhamos para as mulheres assassinadas em Portugal, elas foram exatamente assassinadas nesta janela de tempo que demora a aplicação de uma medida de proteção”, denuncia.
Por isso, tal como referem os relatórios internacionais, “Portugal precisa de pequenas afinações na sua legislação, mas ela precisa é de ser aplicada”, reafirma.
“Só podemos falar em medidas ou penas maiores quando temos material suficiente para poder avaliar que as penas, tal e qual como são, são insuficientes. Os próprios relatórios internacionais assim o indicam: Portugal precisa de pequenas afinações na sua legislação, mas que ela precisa é de ser aplicada”, sublinha.
A polémica em torno do juiz Neto de Moura, com as suas decisões em casos de violência doméstica, deu novo fôlego ao tema na comunicação social. Na opinião do responsável pela área da violência de género e doméstica da APAV, as polémicas podem ser importantes para não deixar esquecer o assunto, mas “temos de ter atenção ao que sai para a opinião pública”.
“Nós, que trabalhamos todos os dias com estas pessoas, sentimos que ficam mais receosas e mais desconfiadas, porque a grande mensagem que vai passando é de que o sistema não funciona”, lamenta.
Só este ano, já morreram pelo menos 12 mulheres vítimas de violência doméstica.