21 out, 2019 - 08:25 • Ana Carrilho
A Unidade de Cuidados Continuados Integrados Bento XVI, em Fátima, é a única da Rede nacional preparada para receber pessoas com demência. Com o número de idosos com algum tipo de demência (sobretudo Alzheimer) a aumentar, esta Unidade serve também de modelo a nível nacional: dá formação e estágios a profissionais de lares e instituições, sobretudo da União das Misericórdias. O edifício foi construído a pensar nas necessidades destes doentes.
Um triângulo sem fim
Quem chega à Unidade de Cuidados Continuados Integrados Bento XVI, em Fátima, apercebe-se da grandeza do edifício mas não da sua forma. É preciso passar a Receção e ultrapassar as portas codificadas por questões de segurança para se ver o corredor largo e luminoso, separado do exterior por enormes paredes de vidro. Lá fora, o jardim bem cuidado, cheio de cor e de aromas é o núcleo do edifício.
Em forma triangular, feito de raiz para acolher doentes que além de alguma enfermidade temporária, têm demência. “A estrutura do edifício foi pensada de forma a que a pessoa possa deambular livremente, sentir que não está presa porque no fundo, é um triângulo sem fim. E se estiver no piso de baixo, até pode ir ao jardim”, explica à Renascença a psicóloga Helena Pedrosa.
As pessoas chegam à UCCI através da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. Podem vir de qualquer ponto do país, mas a predominância é do Centro e Sul e preferencialmente, com algum tipo de demência.
Quando chega, cada utente é avaliado por uma equipa multidisciplinar, incluindo a avaliação neuropsicológica para conhecer as capacidades mais mantidas, as maiores dificuldades em termos cognitivos, os gostos e hábitos. De acordo com a caracterização, os doentes são divididos em grupos com um determinado perfil cognitivo.
Recordar é viver
Se o tempo o deixar, uma boa parte das atividades é desenvolvida no jardim, ao ar livre. Um jardim sensorial, cheio de cores e cheiros das plantas que alguns utentes tratam e regam. “Vão-se lembrando de outras plantas e árvores e vão dizendo o que faziam nas suas terras. Lembra-lhes a vida que tinham”, revela a animadora social Maria de Jesus, a quem tratam carinhosamente por Ju.
Numa mesa ampla estão espalhadas dezenas de fotos com caras conhecidas para identificarem. Há jogos de tabuleiro, livros e revistas para ler, trabalhos manuais para fazer. Cada um ao seu ritmo.
“Costumo dizer às animadoras que o que interessa, nesta Unidade, não é produzir obras de arte ou poemas muito bonitos. O que interessa é que todos participem ativamente dentro das suas possibilidades. Se a atividade é muito difícil para alguns, então temos que a simplificar, temos que ajudar a que a pessoa participe e sobretudo, sinta que participa”, frisa Helena Pedrosa.
Muitas das atividades são acompanhadas com música, “que têm mais significado para as pessoas porque lhes lembram tempos de juventude e acabam por ter um efeito tranquilizador”, explica Manuel Caldas de Almeida, diretor clínico desta UCCI, que pertence à União das Misericórdias.
O edifício está cheio de trabalhados realizados pelos muitos utentes que têm passado pela UCCI desde 2013, quando foi inaugurada. E de sinais que fazem apelo às rotinas do quotidiano, como a ida ao cabeleireiro ou ao Café das Memórias: uma sala com uma pequena cozinha (onde algumas utentes já fizeram bolos), uma dispensa, mesas e cadeiras, peças ornamentais nos armários e quadros na parede. Há chá e café. E conforme as suas possibilidades, os utentes ajudam a servir. Depois, é um desfiar de recordações … mais entre as senhoras. Os senhores preferem ler o jornal e discutir futebol, revela Helena Pedrosa.
Cada um com o seu plano
É verdade que nem todos participam ou pelo menos com o mesmo empenho. Também tem a ver com o nível de demência. Mas a JU e as outras animadoras estão lá para os incentivar.
Para os utentes em fase mais avançada da demência, que já não conseguem participar nas atividades de animação, a estimulação sensorial é muito importante. “fazer com que o cérebro se lembre, por exemplo, do cheiro da canela, o sabor da melancia, o tato de uma textura”. E Helena Pedrosa dá exemplos. “Se estamos a entrar no Verão, podemos ajudar a pessoa a sentir a areia, a ver imagens que lembrem a praia, eventualmente levá-la á praia, se tiver condições. Mexer nas conchas, ouvir o som do mar. Tudo isso acaba por ser integrado”.
Depois, há quem se mostre mais relutante face a determinadas atividades, como a fisioterapia. Então é preciso encontrar alternativas, basicamente, “dar a volta ao doente”, explica o Diretor Clínico Caldas de Almeida, enquanto passam por nós dois utentes, um a empurrar a cadeira de rodas do outro. “Estes senhores estão a ajudar a levar os que estão em cadeira de rodas para o lanche ou para o almoço. E vão pelo caminho mais comprido. Acabam por fazer fisioterapia”.
A maior parte dos utentes está medicada para algum tipo de demência, em muitos casos, Alzheimer. “Mas devemos privilegiar as intervenções não farmacológicas, com o nosso contacto, as rotinas. Uma pessoa que não sabe muito bem onde está ou o que fazer a seguir, se tiver uma rotina, ajuda-a a estar menos perdida. A medicação não é vista como uma necessidade básica mas como uma necessidade de cada doente”, refere a psicóloga.
Cada um com o seu “ninho” …
Todos os quartos são personalizados. À porta têm um motivo, sempre que possível, escolhido pelo utente (por exemplo, uma flor, um objeto, uma fotografia) que é replicado ao pé da cama para que cada um saiba que aquele é o seu espaço.
Há quartos individuais ou com duas camas. Mas sempre com pouco mobiliário, “para que as pessoas possam trazer algumas das suas coisas; livros, fotos, a sua manta, um quadro. Para que possam reconstruir o seu ninho, mesmo que seja só por três ou seis meses”, diz Caldas de Almeida. “Seja o tempo que for, as pessoas com demência precisam muito de se sentirem confortáveis. E o mobiliário com que nos vamos ligar mais é o da época dos nossos 40 anos. Porque numa primeira fase da vida há pouco dinheiro e depois é que compramos as coisas que mais gostamos, é a essas que ficamos ligados”, explica Caldas de Almeida.
… e a sua história
Histórias de vida é o que não falta nestes corredores da UCCI Bento XVI e a animadora JU ouve muitas. “Há coisas impressionantes. Está um senhor ou uma senhora a caminhar, parece que não tem nada e de repente, entorna o que tem na mão; estamos a conversar e perde a ideia, vai buscar palavras que não têm nada a ver com o que estávamos a falar. E ao olharmos para a pessoa, não dizemos que tem demência. É difícil e a todos nos toca. Têm uma história de vida, têm uma família de que sentem falta, apesar de muitas vezes ser o silêncio que reina”, diz Maria de Jesus, sem esconder a emoção.
UCCI Bento XVI: um modelo a seguir
A UCCI Bento XVI foi construída de raiz e é referida como um modelo para tratamento de doentes com demência que nalgum período da sua vida tiveram outros problemas que obrigaram à hospitalização e sequente recuperação.
O diretor clínico Manuel Caldas de Almeida revela todas as semanas recebe pessoas de outras instituições, sobretudo Misericórdias, que vão a Fátima para conhecer a Unidade e o seu modelo de trabalho. Há pacotes de formação teórica e estágios de integração. O objetivo é que os profissionais fiquem preparados para receber utentes com demência nas suas instituições, dando-lhes qualidade de vida.
Qualidade que custa dinheiro, avisa Caldas de Almeida. “É evidente que temos obrigação de ser o mais eficientes possível e prestar o serviço ao mais baixo preço possível. Mas as AVD’s (Atividades de Vida Diária) exigem pelo menos mais 2-3h de apoio a uma pessoa com demência. Numa Unidade de Cuidados Continuados Integrados custa mais 20-30 euros/dia”.
Por isso, o responsável da UCCI Bento XVI, que também é dirigente da União das Misericórdias, alerta que a sociedade e o governo têm que pensar no apoio à demência. “Se não se começar a reconhecer isso, vamos ter muitas pessoas mal cuidadas porque há muitas instituições que vivem exclusivamente do que o Estado lhes paga. E se o estado não lhes paga para terem uma auxiliar/8 doentes; se tiverem 1/16 doentes, o resultado é mau”, conclui.
É que o número de pessoas com algum tipo de demência (idosos e não só) cresce exponencialmente. Caldas de Almeida refere um estudo recente em relação aos utentes dos lares da União das Misericórdias.
85% das pessoas têm grande dependência (precisam de ajuda para comer, para a higiene, para se mobilizar), metade tem demência diagnosticada e quase 90% tem duas ou mais doenças crónicas.
A UCCI Bento XVI tem 64 acamas: 31 para estadias de média duração, até 3 meses; 30 para longa duração, de 3 a 6 meses. E 3 camas particulares, sem tempo de permanência limitado.
Mas há exceções: são os chamados casos sociais, em que os doentes não têm para onde voltar ou a família não os pode ter em casa. Apesar das regras da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, ficam na Bento XVI até que seja encontrada uma resposta social.