04 nov, 2019 - 19:59 • Ricardo Vieira
A forma como os gigantes tecnológicos e os governos tratam os dados das pessoas representa um abuso que foi legalizado e uma ameaça à democracia. A ideia foi defendida pelo ativista norte-americano Edward Snowden na abertura da Web Summit, que começou esta segunda-feira, em Lisboa.
“Sim, estas pessoas estão envolvidas em abusos, nomeadamente quando falamos de Amazon, Facebook ou Google, mas o seu modelo de negócio é o abuso e alegam que é legal. Quer estejamos a falar do Google ou da NSA, esse é o verdadeiro problema. Legalizámos o abuso contra as pessoas. Criámos um sistema que torna a população vulnerável para benefício dos privilegiados”, acusa o antigo analista da CIA.
Numa entrevista através de videoconferência a partir da Rússia, onde está exilado, traçou um cenário negro da internet, das grandes empresas do setor e dos governos que não olham a meios para para recolher dados dos cidadãos.
“Os dados não são inofensivos nem abstratos quando se trata de pessoas. E quase todos os dados recolhidos hoje em dia são sobre pessoas. Não são os dados que estão a ser explorados, são as pessoas que estão a ser exploradas. Não são os dados e as redes que estão a ser influenciados manipulados, és tudo que estás a ser manipulado”, alerta o homem que, em 2013, revelou ao mundo o esquema de vigilância em massa levado a cabo pelos Estados Unidos.
Redesenhar a conetividade na internet
Edward Snowden reforça que as nossas comunicações continuam vulneráveis a gigantes como Google ou Facebook e aos governos. Por isso, defende que é preciso “redesenhar o sistema básico de conetividade na internet”.
"Temos cada vez mais comunicações encriptadas, mas não são todas. Mesmo quando estão encriptadas elas continuam a ser observadas. É possível ver a sua origem e destino", salientou o ativista.
O antigo analista da CIA deixou um apelo aos participantes na quarta edição portuguesa da Web Summit, um dos maiores encontros tecnológicos do mundo: "em vez de pedir às pessoas para confiarem em ti, nos teus serviços, como fazem os concorrentes, mostra porque é que não têm de confiar em ti"
"Todos os intermediários entre ti e as pessoas com quem estás a falar não te controlam, não entendem o teu conteúdo, é privado para eles. As únicas pessoas em que tens de confiar são as pessoas com quem falas, nos extremos da comunicação. E a razão porque isso é importante, mesmo que sejas a favor da NSA, do Facebook, é que há companhias e leis que não se aplicam a estes países. São jurisdições diferentes, a internet é global, a lei e a tecnologia não são a única coisa que te podem proteger, nós somos a única coisa que nos pode proteger. E a única maneira de proteger alguém é proteger toda a gente", defendeu.
"Negócio com o diabo"
Snowden considera que as grandes companhias tecnológicas, que cedem os dados dos clientes aos governos que não prestam contas, fizeram um "negócio com o diabo".
"Quando temos novas tecnologias que estão a ser usadas por pequenas companhias, organizações não-governamentais, defensores dos direitos humanos, para protegê-los de ameaças, estamos na direção de um mundo mais livre e seguro. Mas quando vemos governos e companhias a trabalhar concertadamente, assistimos ao nascimento de um complexo entre os dois, em que se tornam na mão esquerda e direita do mesmo corpo. O que vemos é a concentração do poder", alerta o autor do livro ‘Vigilância Massiva, Registo Permanente’.
Snowden contou porque motivo decidiu revelar ao mundo o esquema de vigilância em massa das agências estatais norte-americanas para as quais trabalhou.
"No teu primeiro dia na CIA tens que fazer um juramento, não a um segredo, ao Presidente, mas para defender Constituição dos Estados Unidos contra todos os inimigos internos ou estrangeiros. Anos depois, descobres que o que estás a fazer... a agência estava a fazer uma gigantesca conspiração para violar esse juramento. A quem devemos a nossa maior lealdade? Para mim a resposta é clara. Quando o Governo pode atuar à porta fechada e mudar as regras do jogo sem o nosso consentimento, acho que o público tem o dever de saber", defendeu na abertura da Web Summit.
Contou que decidiu denunciar o caso por razões que tinham a ver com tecnologia, que passou a vigiar "toda a gente o tempo todo", mesmo quem não era suspeito de nada; mas também por uma questão de democracia,
"Sistemas foram criados e ninguém em situação de poder fez nada para travar isto. Porque beneficiavam disso. E isto leva-nos ao problema democrático: a lei não interessava, os tribunais, os teus direitos. E isto leva-nos a pergunta que ainda estamos a lidar: o que fazer quando as instituições mais poderosas da sociedade passaram a ser as que menos contas prestam à sociedade?", questiona Edward Snowden.