14 fev, 2020 - 09:00 • Henrique Cunha
Tudo aponta para que a eutanásia venha a ser aprovada no Parlamento. Os partidos têm legitimidade para avançarem com estas propostas, apesar de não as terem incluído nos programas eleitorais?
O Parlamento pode decidir sobre qualquer problema que surge por iniciativa dos deputados. Agora, uma coisa é ter legitimidade, outra coisa é ter liceidade moral. E, moralmente não têm capacidade para isso. Primeiro, tem de haver um certo período entre duas decisões opostas. Não é razoável dizer por mero tacticismo político “vamos avançar com isto”, porque agora temos mais gente disposta. Ou seja, chegamos depois à conclusão que a decisão de há ano e meio era do mau Parlamento e esta agora vai ser do bom Parlamento. Isto é um descredito enorme para o próprio parlamento.
A sociedade civil está a mobilizar para pedir um referendo. É um mal menor, ou nesta altura, é o mínimo que se pode fazer?
Eu como me revejo na posição do Dr. Paulo Rangel, tinha muitas dúvidas sobre o referendo. Mas neste momento é a única coisa que pode travar a votação no Parlamento. Porque não sabemos nada. Repare que não há nenhum movimento especial, não há nenhuma necessidade não há nenhuma premência. Eu não vejo manifestações à porta do Parlamento a exigirem a eutanásia. Se porventura estes projetos fossem aprovados - claro que dia 20 não é uma aprovação - mas se vierem a ser aprovados, isto é de uma importância extraordinária. Seremos o quarto país no mundo a ter uma legislação deste tipo e todos os outros países são constituídos por estúpidos por burros por pessoas que não se interessam por nada, são atrasados? Se acabarmos com o princípio que a vida humana é inviolável, e se for assim, obviamente que círculos extremistas pedirão em breve a pena de morte para crimes graves. Nós que fomos dos primeiros a abolir a pena de morte teremos naturalmente de considerar legítima a proposta. Claro que não será aprovada provavelmente, mas é legítimo que alguém levante e diga: então se a vida humana não é um bem realmente tão protegido e tão fundamental, então também podemos entrar com outras condições para além dessas que vocês apontam em que seria possível considerar a morte como algo que pode ser infligido a uma pessoa.
Disse que a vida não é um valor é a raiz de todos os valores! Ao avançar-se para o referendo não se está a relativizar essa raiz?
Essa é uma é uma posição defensável, é uma posição certamente honesta dizer que a vida não é referendável. É evidente que ao propor um referendo quem o propõe, propõe-no na ideia de que vai obter a reprovação destas medidas. Seria pelo menos uma ocasião para que se realizasse um debate a sério e as pessoas sejam envolvidas. Para que conheçamos finalmente qual é a opinião pública, porque ninguém sabe. E é por isso que o referendo me parece, embora incida sobre uma questão que, pelo menos, muitos consideram não referendável e é uma posição defensável; mesmo assim é uma medida necessária neste momento.
No debate, ainda em fase embrionária, um dos argumentos contra a eutanásia é baseado nas experiências onde ela já é permitida. Conhece essas realidades? Quais são as grandes fragilidades da legislação?
Aqueles quatro projetos que estudei são muito fracos do ponto de vista da fundamentação inicial, oferecem contradições e criam uma série de dificuldades a que não respondem. Fundamental é que eles preveem que matar é crime; em certas condições quem o pratica não é penalizado.
É evidente que a primeira coisa que vai acontecer se isto for aprovado é exigir a descriminalização, porque não vejo que um médico que pratique porventura a eutanásia – e maior parte opõe-se - ache que está confortável por ter praticado um crime, mas não ir para a cadeia. Parece-me que ninguém dos defensores da eutanásia aceitará de bom grado isso. E por outro lado, isso vai criar consequências extraordinariamente gravosas. A primeira como disse é de fazer uma brecha, uma erosão, no conceito de que a vida é um bem precioso que deve ser sempre conservado.
"Quem sofre tem de ter aceitação, compreensão e cura do seu sofrimento."
Há então o risco de se abrir uma cratera legislativa onde no futuro caibam cada vez mais exceções?
O velho argumento da rampa deslizante que naturalmente um dos projetos tenta menorizar, mas é uma realidade eficaz e eficiente, por exemplo, na Holanda e na Bélgica.
Ainda hoje na Bélgica já estão a discutir no Parlamento alargamentos da possibilidade de recorrer à eutanásia. Neste momento há três propostas diferentes e esses alargamentos são o ir muito mais longe do que aquilo que era inicialmente.
E na Holanda discute-se a possibilidade de se dar um comprimido a quem faz 70 anos…
Pelo menos está uma proposta nesse sentido, não sei se será aprovada. O que é de uma irresponsabilidade total e representa uma coação. Na lei portuguesa isso representaria uma coação, porque as pessoas idosas dependentes que realmente tenham já uma vida já há muito restrita sentiriam uma certa obrigação moral de libertarem os seus familiares e sua família da carga. Então teríamos os nossos velhos a dizer: “já não sirvo para nada”, “eu só dou trabalho, porque é que eu não hei-de recorrer a isto?”. Portanto, há uma coação moral. Assim como poderia haver uma coação pessoal. E poderia haver uma coação nos centros de dia, nos lares de terceira idade. “Que é que este senhor está aqui a fazer? só dá trabalho!” A única estrutura que teria uma vantagem material disto seria a Segurança Social. Porque seria muito mais barato fazer eutanásias do que continuar a olhar por pessoas dependentes.
"A eutanásia é uma resposta negativa e não é resposta a que as pessoas têm direito"
O país tem asseguradas as condições de defesa da vida, sobretudo dos mais frágeis?
Pois não, quer dizer, aquilo que se deveria fazer. As consequências da eutanásia são de alargamento. E aliás o número de eutanasiados tem aumentado. Na Bélgica acontece ainda que é calculado em cerca de 500 mortes por ano não autorizadas pela própria pessoa. As eutanásias que são depois analisadas e que não cumprem as regras definidas, nunca levaram à condenação de quem praticou o ato ilegal.
Representantes de nove confissões religiosas unem-se contra despenalização, dizendo que legalização seria “demissão coletiva” perante quem sofre...
Se digo que uma pessoa está em sofrimento e não posso fazer nada, então proponho a tua eliminação física. Isso traduz naturalmente uma incapacidade, traduz uma impotência. É evidente que não é assim que se responde, mas sim com cuidados paliativos. Enquanto um Estado não tem cuidados paliativos suficientes para atender toda a sua população, como é o caso em Portugal, não tem o direito moral de instituir a eutanásia porque muito dos seus pacientes recorrem ou podem recorrer a ela por não obterem resposta.
Quem sofre tem de ter aceitação, compreensão e cura do seu sofrimento. E não simplesmente ser eliminado para acabar com o sofrimento. A eutanásia é uma resposta negativa e não é resposta a que as pessoas têm direito.
Preocupo-me em continuar a trabalhar. Provavelmente esta é a minha última luta, mas é uma luta em me empenho porque ela é boa para as pessoas e a ética faz-se fundamentalmente para que as pessoas tenham uma vida boa.