17 fev, 2020 - 07:00 • Henrique Cunha
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Nesta entrevista à Renascença, Filipe Almeida revela que no mês que vem Portugal vai ser palco de jornadas sobre cuidados paliativos, com a participação da Academia Pontifícia para a Vida.
Sobre a despenalização da eutanásia, diz ser contra e dá o exemplo da sua própria experiência como médico. Na sua opinião, o Parlamento não tem legitimidade para legislar sem ouvir a população e defende, por isso, a convocação de um referendo.
Como é que o Professor, membro da Academia Pontifícia para a Vida, olha para o debate em curso em Portugal sobre a Eutanásia?
A academia tem feito ao longo dos últimos anos um trabalho importante e intenso, publicando inclusivamente livros sobre questões como a da eutanásia, dos cuidados paliativos, do morrer e do terminar a vida. Este debate pode ter uma saída estranha ou não, mas no sentido de poder eventualmente ser contra aquilo que nós pensamos ser o respeito pela dignidade humana.
A academia está atenta a esta matéria e em março irá participar numa reunião, aqui em Portugal, juntamente com a Associação dos Médicos Católicos e com a Comissão Episcopal, numas jornadas sobre cuidados paliativos que não sendo especificamente uma questão de eutanásia, não deixa de ser uma matéria importante, porque disto pode depender aquilo que se vier a definir em relação à questão colocada para o morrer das pessoas.
Como pediatra fica mais perturbado com esta discussão?
Qualquer pessoa deve ficar perturbada com este problema. Qualquer que seja a sua posição. Como pediatra deixe-me dizer-lhe que a experiência que tenho de 25 anos de cuidados intensivos e com situações muito, muito difíceis… nunca tive nenhum pai que me tivesse pedido eutanásia para o filho.
E isto é um desafio à nossa reflexão e que nos deve levar a perguntar porquê? Creio que a medicina pediátrica está muito preparada e no seu dia-a-dia trabalha numa proximidade imensa com os pais. Os pais estão dia e noite e os médicos também. E esta forma de estar e de acompanhar, de fazer este caminho em companhia, percebendo-se a forma de exercer a compaixão é provavelmente o melhor dos lenitivos para conseguir acompanhar estas experiências duras de sofrer.
Pelo facto não haver pedidos de eutanásia, ninguém pode dizer que não havia sofrido e sofrimento duro. Provavelmente é uma forma diferente, pelo menos, muito particular de estar que faz com que a questão da eutanásia não se ponha como solução para um o problema que muitas vezes é descrito como insolúvel, quando na verdade não o é. E esta é a questão que tem que ser colocado em cima da mesa.
Há quem manifeste o receio de que eventual despenalização da eutanásia - e tendo em consideração o exemplo de outros países onde ela já foi aprovada - possa provocar uma fúria legislativa. Há esse risco?
É real e é humano que seja assim, porque quando nós retiramos um patamar de exigência para determinada situação limite não é difícil depois aliviar esta exigência. E, portanto, perante novas situações cuja abordagem não foi rigorosa no seu início abre portas a que com mais facilidade possamos avançar para novas situações.
E como é que se responde aqueles que defendem que em liberdade cada um pode dispor da sua vida?
Isso é uma falácia. Na verdade, o próprio projeto legislativo põe em causa esta liberdade absoluta. Em primeiro lugar, não existe esta liberdade absoluta separada de um outro sentido da afirmação da nossa individualidade, que é o sentido de responsabilidade. A liberdade não pode ser afirmada sem qualquer limitação no domínio da responsabilidade. Portanto, não há uma liberdade absoluta.
Segundo, eu não tenho certamente direito a dispor como quero da minha vida. A vida é um valor de tal forma importante para mim que não vou dispor dela, manipulando-a a meu belo prazer. Esta liberdade implica mais do que dispor dela, cuidar dela. Mais do que dispor e fazer o que quero e me apetece da minha vida é exatamente necessário cuidar o melhor possível dela. E esta autonomia que hoje é alocada como absolutamente fundamental para poder gerir estas dinâmicas, tem de ser enquadrada como em todos os outros domínios da bioética com sentido de responsabilidade.
Mas dizia eu há pouco que a própria reconhece este limite à liberdade. Quando no limite, as propostas de lei indicam que esta liberdade tida como absoluta fica aprisionada quando eventualmente o médico ou os médicos disserem não. Se for uma liberdade em absoluto, o médico não tem aqui poder para dizer sim ou não. Mas os próprios projetos colocam a palavra final no médico ou numa equipa que vai dizer estás em condições de se poder respeitar isto, ou, apesar de o teres pedido isto não reúne condições para. Portanto, é uma liberdade que a própria proposta de projeto de lei admite como necessariamente condicionada.
Falou-me de situações extremas e que nunca ouviu ninguém a pedir que fosse eutanasiado, mas ainda assim pergunto se é legítimo dizer a alguém que está em sofrimento absoluto, aguenta?
Ilegítima é essa afirmação. Devo perguntar o que posso fazer para que esse teu sofrimento seja de facto mitigado e acompanhado? E a resposta a este repto do sofrimento não é matar, porque é a forma mais fácil e mais prática que não responde à questão do sofrimento. Responde à questão da minha insegurança e faz esquecer porventura uma incompetência técnica, um incumprimento profissional, uma inadequação de uma resposta que é tida no plano não da intensidade farmacológica, nem tecnológica, mas da intensidade do cuidado paliativo.
A questão que tem que ser colocada é como é que eu trato do teu sofrimento insuportável? A medicina hoje tem um arsenal absolutamente capaz de tratar as dores, apesar dos preços elevados. Quando não o faz está a ser incompetente, está a ser negligente naquilo que são as ferramentas que dispõe. A medicina não pode esquecer que tem ferramentas capazes de apoiar o sofrimento dos doentes.
Porque é que nós ao fim deste tempo todo, que temos uma medicina verdadeiramente vitoriosa e poderosa ainda está tão mal implementada ao nível da aplicação dos cuidados paliativos? Porque é que estamos tão tranquilos e tão pouco preocupados? Porque é que tantos doentes ainda hoje não têm acesso aos cuidados paliativos?
É legitimo reclamar um referendo caso a legislação venha a ser aprovada?
Diria que é o mínimo dos mínimos, porque não percebo que seja possível uma assembleia que não foi mandatada com reflexão sobre esta questão que é absolutamente fundamental do ponto de vista do exercício da cidadania e da compreensão do viver humano. Não tendo sido feita nenhuma reflexão a este nível, os deputados não estão mandatados para o fazer. Portanto, o mínimo que deveria fazer é criar um referendo para que isto fosse debatido e pudessem, pelo menos, ser auscultadas as pessoas no seu pensar e no seu pulsar. Do meu ponto de vista, o Parlamento não tem legitimidade para legislar, sobretudo, sem ouvir a população.
E haverá ainda menos legitimidade do Parlamento pelo facto de em campanha eleitoral o tema não ter sido incluído na discussão?
Não creio que tenha essa legitimidade porque não foram colocadas às pessoas essas questões. Ainda para mais, quando estamos perante uma questão que se refere a um tempo muito particular do viver, que é o viver ferido profundamente por uma doença e que muda radicalmente as próprias pessoas naquilo que é a compreensão do seu viver.
Se isto não é tratado com esta sensibilidade como é que é possível desenhar decisões olhando para cada outro como se fosse um igual a mim, quando o outro é de facto claramente mais frágil do que eu.
Estranha o facto de num período pouco superior a ano e meio os deputados tenham decidido voltar ao mesmo tema?
Isto pode decorrer de uma perspetiva utilitarista. De facto, neste momento, a configuração do desenho parlamentar admite a possibilidade matemática desta lei ser aprovada. Não havendo razões diferentes que tenham condicionado posturas diferentes relativamente a esta matérias da anterior legislatura para esta, este novo enquadramento legislativo naturalmente que é propício a que se possa repensar a colocar em debate na assembleia, quando matematicamente, pelo menos do ponto de vista teórico teórico, a decisão possa ser favorável à proposta dos partidos.