17 fev, 2020 - 08:20
Leia também
Longe de ser, como alguns pretendem, uma causa com fundamento exclusivamente religioso, a defesa da vida e a oposição à eutanásia e ao suicídio assistido tem recolhido globalmente um apoio generalizado, oriundo de quadrantes variados, e assente em numerosos e ponderosos argumentos.
1. Há apenas um par de anos, uma declaração a favor da eutanásia recebeu no Parlamento Europeu o apoio de somente 95 dos seus 751 deputados. Desde 2002, quando foi pela primeira vez legalizada na Holanda, somente cinco países em todo o mundo aprovaram a eutanásia. Repetem-se os casos de propostas de despenalização rejeitadas. E em Portugal inúmeras vozes se têm levantado contra a sua despenalização, entre elas a do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) ou a da Ordem dos Médicos.
Não haja dúvida de que as posições a favor e contra estas práticas têm ambas em vista o bem do doente e a defesa da dignidade humana. No entanto, elas expõem as profundas divergências, nas sociedades modernas, sobre o sentido desta dignidade, do sofrimento e da morte, da vida e da autonomia individual.
2. A primeira posição, de matriz marcadamente personalista, considera que a vida humana tem um valor intrínseco, e essa dignidade inerente a todos os homens é a base da sua igualdade e dos direitos humanos. É por isso inadmissível que a vida de alguns cidadãos seja inviolável e não a de outros, autorizando-se alguém – nomeadamente aqueles investidos de especiais responsabilidades enquanto profissionais de saúde – a matar, ainda que a pedido. Nada justifica que para acabar com o sofrimento se elimine a pessoa que sofre.
A outra posição filia-se filosoficamente, sobretudo, em correntes liberais e utilitaristas que entendem que a autonomia individual é de tal modo importante, que a qualidade de vida fica de tal forma diminuída pela dor insuportável ou, ainda, que algumas vidas, ou mortes, são de tal modo indignas, que se justifica matar. Quanto mais, no entanto, se buscar o fundamento destes atos numa autonomia tendencialmente absoluta e relativizadora da vida, tanto mais se corre o risco de uma análise simplista e redutora dos densos aspetos – filosóficos, sociais ou psicológicos – em presença, com o consequente empobrecimento do debate.
Visão alternativa sustentarão aqueles que, considerando que ao direito cabe justamente promover a conciliação dos bens – autonomia e vida – aqui alegadamente em conflito, a despenalização da eutanásia, ou ao menos do suicídio assistido, constitui a solução proporcional e equilibrada que se impõe.
3. Note-se, em todo o caso, que o dito direito a morrer (dignamente) não tem logrado reconhecimento a nível do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e que o equilíbrio pretendido afigura-se profundamente instável, até porque a posição favorável à eutanásia e ao suicídio assistido está ferida de uma contradição sempre muito difícil de ultrapassar: se matar é uma solução possível, por que excluir a eficácia da autonomia nos demais casos, nomeadamente naqueles, não previstos na lei, em que também se ajuíze que o sofrimento ou a diminuição da qualidade de vida é tal que justifica igualmente que se mate? A proibição genérica de matar protege a todos e a cada um de forma imparcial e igual, independentemente das circunstâncias. Porém, aceitando-se que a eutanásia é uma forma adequada para lidar com o sofrimento ou a perda da qualidade de vida de alguém, então ela será adequada – e difícil será sustentar o contrário à luz do princípio da igualdade – não só para aliviar o sofrimento dos doentes terminais, mas também de doentes mentais ou crianças com doenças incuráveis; e o equilíbrio pretendido, definindo quais desejos ou manifestações da autonomia são válidas e produzem efeitos, e quais não, dificilmente poderá deixar de se considerar uma intrusão indevida do Estado na vida das pessoas.
4. Por tudo isto, não é assim de estranhar a rampa deslizante. Na Bélgica, a eutanásia, que começou por estar acessível apenas a adultos competentes e menores emancipados, acabou há seis anos por ser alargada a menores. Na Holanda, a mesma foi recentemente estendida aos recém-nascidos. É recorrente a discussão neste país sobre a despenalização para pessoas, nomeadamente idosos, que, não obstante não padecerem de qualquer doença, a solicitam por sentirem que a sua vida está completa e não faz já sentido. Na prática, o número de casos de eutanásia e suicídio assistido triplicou na Holanda de 2002 para cá. Muitas das crianças eutanasiadas neste país por uma suposta baixa qualidade de vida futura padeciam de espinha bífida, uma malformação congénita relativamente comum, encontravam-se estáveis e gozavam de uma longa expectativa de vida. As denúncias de abusos têm sido recorrentes e muitas têm chegado ao TEDH: encontra-se pendente o caso, ocorrido na Bélgica, de uma pessoa em estado de depressão crónica que foi eutanasiada por um médico sem que tenha sido dado qualquer conhecimento aos filhos.
Os projetos que vão ser discutido têm nomes difere(...)
5. É de se notar ainda que, enquanto a posição personalista valoriza a natureza relacional das pessoas e o bem comum, a defesa da eutanásia é normalmente alicerçada numa visão individualista e atomística da sociedade, em que as consequências sociais das decisões pessoais não são tidas na devida conta. A eutanásia, porém, tem consequências que ultrapassam largamente a pessoa concreta cuja vida se suprime. Desde logo no âmbito familiar: basta perguntar a quem tenha vivido a experiência do suicídio de alguém que se ama. Mas também num âmbito social mais alargado: a difusão de uma cultura de descartabilidade da vida e, particularmente, o risco acrescido de estigmatização, de discriminação ou mesmo pressão e condicionamento das decisões dos mais vulneráveis.
Dada a dimensão social do fenómeno, o que esperar então do Estado? Desde logo, deverá contrapor à pretensão de uma autonomia tendencialmente absoluta a reafirmação da inviolabilidade da vida humana, que não pode ser suprimida, mesmo a pedido. Perante a alegada indignidade da vida que sofre insuportavelmente, cabe às leis de um Estado de Direito (assente no princípio da dignidade humana) proclamar que nenhuma vida vale mais do que outra, que uma pessoa que sofre não tem menos dignidade do que qualquer outra, que sofra menos. E assegurar a oferta de cuidados paliativos adequados – hoje apenas acessíveis a uma parcela da população, crescentemente envelhecida – para que se busque cada vez menos no suicídio ou na eutanásia a resposta.
6. Finalmente, as duas posições divergem ainda sobre o papel do médico e dos profissionais de saúde. A eutanásia e o suicídio assistido subvertem gravemente a relação médico-paciente, comprometendo a confiança que é a base dessa relação. Por essa razão, a American Medical Association tem-se consistentemente oposto à legalização destas práticas. Contra elas, renovando a sua posição de sempre e reiterando o seu compromisso firme com a ética médica, também se manifestou a Associação Médica Mundial numa declaração muito recente, de outubro do ano passado. Não há, pois, qualquer indicação médica para a eutanásia ou o suicídio assistido, nem estes se enquadram na prática da medicina. E isto tem fundamento, afinal, no princípio, tão antigo quanto a própria medicina, de que os médicos não devem matar os seus pacientes.
7. Na realidade, quem morrerá através da eutanásia se a mesma for despenalizada em Portugal? Os doentes, os mais fragilizados... quiçá a breve trecho também os deprimidos, os velhos e as crianças, os deficientes... aqueles que deviam ser especialmente protegidos. Perante a aguardada aprovação desta legislação, espera-se que estas questões, muitas, que a mesma suscita, sejam suficientes para que o Presidente da República provoque junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da lei, ou faça uso do veto político. Em qualquer caso restará a possibilidade de que, eventualmente, num futuro mais ou menos próximo, uma nova maioria parlamentar a revogue, impedindo que a eutanásia e o suicídio assistido se consolidem na nossa ordem jurídica.
José Pedro Ramos Ascensão, jurista e antigo membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV)