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​Opinião de Tânia Caeiro Varela*

Eutanásia é a solução mais "fácil"

19 fev, 2020 - 19:31

É preciso recentrar a discussão. A formação é um processo mais moroso, difícil e exige maior investimento de recursos. É menos dispendioso e mais “fácil” oferecer a eutanásia como resposta.

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Esta quinta-feira será novamente discutida e votada a legalização da eutanásia no nosso parlamento com a justificação, segundo os defensores, de proporcionar uma morte mais digna aos portugueses. Esta discussão e votação surgem antes de se disponibilizarem cuidados paliativos a toda a população portuguesa. Serão votados projetos de lei que permitem que as pessoas escolham morrer com mais dignidade, sem antes estar assegurado que vivem com dignidade quando enfrentam uma doença progressiva, avançada e incurável.

Muito se tem feito na área dos cuidados paliativos em Portugal, principalmente por profissionais empenhados em cuidar e promover a dignidade no fim de vida. Em 2017 surge o primeiro Plano Estratégico de Desenvolvimento para os Cuidados Paliativos. Contudo, o investimento por parte do Serviço Nacional de Saúde nesta área tem ficado muito aquém das necessidades dos doentes e apenas 30% da população tem acesso a este tipo de cuidados.

Segundo o plano estratégico 2019-2020, deveriam existir 54 equipas comunitárias de suporte em cuidados paliativos; em vez disso, em novembro de 2019, existiam 29, sendo que a grande maioria funciona com graves problemas de recursos humanos e materiais, resultantes da falta de investimento nesses cuidados que podem proporcionar os cuidados devidos a quem, apesar de ter uma doença progressiva, avançada e incurável, continua a viver.

Segundo os estudos feitos em território nacional, relativamente à preferência de local de morte, a maioria dos portugueses deseja estar em casa no momento de morrer, no seu local de conforto, rodeado de quem mais gosta, preservando a sua intimidade e podendo viver até que a morte chegue. Um dos fatores que leva as pessoas a preferir estar em casa é a sensação de segurança sentida; contudo, se os cuidados de saúde não estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, essa sensação é abalada por uma ausência de resposta, fazendo com que doentes e cuidadores se sintam abandonados e que recorram aos cuidados hospitalares, nomeadamente ao serviço de urgência.

As equipas comunitárias são multidisciplinares, especializadas, criadas para cuidar da pessoa com doença progressiva, avançada e incurável com elevado grau de complexidade, e também da sua família. São estes profissionais que podem ajudar os portugueses a terem o conforto e a privacidade da sua casa, até à morte, mas essas equipas necessitam de recursos que lhes permitam funcionar com qualidade. É irónico falar de liberdade e autonomia do doente no momento de escolher a morte, ignorando que a liberdade, a autonomia e o direito de escolha da pessoa doente, estão claramente condicionadas pela falta de recursos.

Também nos hospitais existe uma falta de investimento nos cuidados a pessoas em fim de vida e continuamos a ver, num país que se quer liberal, moderno, e que tenciona dar um salto civilizacional ao legalizar a eutanásia, pessoas a morrerem em macas nos corredores do serviço de urgência. Achamos que a discussão e a votação devem centrar-se no momento da morte e não no que conseguimos fazer pela dignidade em vida.

É verdade que existem pessoas que pedem para morrer, mas a maioria, segundo investigação internacional, fá-lo pela perda de independência, pela solidão que muitas vezes surge num processo de doença prolongada, pelo sofrimento associado à carga que provocamos em quem cuida, e - não menos vezes - pelo descontrolo de sintomas. Um exemplo objetivo de como é necessário que a discussão ainda se foque nos cuidados paliativos, é o facto de Portugal ser um dos países que menos opióides prescreve, um dos indicadores de qualidade nesta área porque são fármacos de eleição no controlo da dor. Se não se prescrevem, será que temos doentes em fim de vida com dor controlada?

Em Portugal existe escassez de equipas especializadas e de profissionais com formação, e os nossos doentes continuam a sentir o impacto da falta de resposta do sistema de saúde. A “solução” que lhes será dada pelo parlamento é poderem escolher “morrer com dignidade”, mas nada será garantido àqueles que quiserem continuar a viver com qualidade de vida, preservando a sua dignidade, porque o mesmo parlamento não cuida de garantir a prestação de cuidados paliativos.

Em 2002 a Bélgica legalizou a eutanásia e, simultaneamente, estabeleceu como prioritária a formação em cuidados paliativos. A Comissão responsável por avaliar o processo concluiu que existe uma tendência para negligenciar a formação, ao passo que os casos de eutanásia aumentaram 786% apenas entre 2002 e 2013.

A formação é um processo mais moroso, difícil e exige maior investimento de recursos. É menos dispendioso e mais “fácil” oferecer a eutanásia como resposta.

O que nos leva a crer que seremos diferentes? O que nos leva a crer que, apesar de legalizarmos a eutanásia, vamos investir nos cuidados paliativos, quando até agora não o fizemos? Aparentemente, quem tem poder de decisão considera que este assunto não merece mais discussão e sobretudo mais investimento.

Num país em que as pessoas trabalham mais de 1800 horas por ano não há tempo para estar, cuidar, visitar e fazer companhia aos que estão doentes. Não há tempo nem disponibilidade para mais um “encargo” com o pai, a mãe, o irmão, a tia porque estamos muito sobrecarregados com a vida. Sentir que somos um fardo custa, dói, acarreta sofrimento existencial, daquele que nenhum fármaco consegue tratar e que pode ser um dos motivos que leva alguém a querer antecipar a morte.

Investir em cuidados paliativos não é só investir em equipas multidisciplinares especializadas, é voltar a investir numa sociedade de cuidadores, para que a opção dada não seja a morte e sim uma vida digna, junto de quem mais se gosta, com o sofrimento inevitável de quem se despede, mas com o conforto de quem se sente amado, protegido e cuidado pela sociedade.

Em 2018 foram votados estes ou outros projetos de lei semelhantes e, apesar de muito ter sido feito desde então, a universalidade e qualidade destes cuidados não está garantida. A Associação Europeia de Cuidados Paliativos recomenda que a hipótese eutanásia não seja colocada antes do acesso aos cuidados paliativos de qualidade ser universal.

Diariamente nos chegam doentes em fase terminal, com grave descontrolo de sintomas, depois de um processo de doença em que o controlo da sintomatologia foi muitas vezes descurado em detrimento de se investir na doença, com mais exames complementares de diagnóstico, mais terapêutica fútil, em vez de se investir nos doentes promovendo conforto e dignidade. É urgente ter profissionais de saúde que olham para as pessoas e as reconhecem como doentes com necessidades paliativas e os referenciam a equipas especializadas em tempo útil.

É importante centrar esforços e investir no que sabemos, pela evidência científica, que traz conforto, qualidade de vida e dignidade, que são os cuidados paliativos.


*Tânia Caeiro Varela, médica de uma equipa comunitária de cuidados paliativos

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