20 fev, 2020 - 00:40
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Algumas questões éticas são chamadas fraturantes, na medida em que dividem fortemente a sociedade, sem que se possa entrever a seu respeito a formação de um acordo quase universal. A maior parte delas dizem respeito a todas as questões que estão relacionadas com o início e o termo da vida humana. A eutanásia faz evidentemente parte delas.
Metodologicamente a discussão pode situar-se sobre diferentes níveis, o nível político, o nível psicológico, cultural, familial, social, económico, religioso, mas ninguém negará que a eutanásia é antes de mais nada, uma questão ética. As breves considerações presentes tencionam manter-se no plano ético, aquém dos níveis respetivamente político, económico ou religioso.
A questão da dignidade da pessoa humana é, no campo desta discussão, compreendida e invocada de modo profundamente diferente pelos que militam contra a eutanásia e pelos seus partidários. Com efeito, os partidários da eutanásia consideram que a situação de grave sofrimento, físico ou psicológico, gera na pessoa uma degradação da sua dignidade, de tal modo que esta degradação se torna “indigna” do estatuto de pessoa. Noutros termos, para estes partidários a dignidade depende das circunstâncias concretas de sofrimento em que a pessoa se encontra, de tal modo que elas podem fazer perder a dignidade pessoal.
Considero que esta opinião está gravemente errada: a dignidade da pessoa não depende de nenhuma situação concreta em que se encontra, mas do seu estatuto irredutível de membro da comunidade humana. É o que os filósofos afirmam ao reconhecerem que a dignidade humana é de natureza ontológica, e que, radicalmente, não é afetada pelas circunstâncias de perda de saúde ou de consciência, durante ou no termo da vida.
É um erro julgar que a dignidade humana pode ser perdida; podemos ter comportamentos que ofendem a dignidade humana, e viver de modo aparentemente indigno desta dignidade; do mesmo modo, o ser humano pode ser fisicamente e mentalmente diminuído, mas estas perdas não podem ser motivos para considerar que o ser humano perdeu a sua dignidade e que, por isso, pode ou deve ser eutanasiado.
Os partidários da eutanásia evocam em primeiro lugar a autonomia da pessoa, para afirmar que não se pode impedir alguém, que está em grande sofrimento, de exercer o seu direito de escolha e, no caso presente, de escolha da morte. Contudo, nem a autonomia nem a liberdade humana são totais. A autonomia é sempre vivida numa comunidade na qual os atos de todos estão interdependentes.
No pano de fundo desta interdependência pode-se perguntar se, eticamente, sou o único “proprietário” da vida que recebi. Considero que não, que não sou o único proprietário da minha vida, mas que devo vivê-la no horizonte comunitário da vida de todos os seres humanos, meus semelhantes. Tal como afirma corretamente a Constituição da República Portuguesa, se a vida é inviolável, isso significa que existe para todos, e para cada um em particular, uma exigência ética radical: ser respeitado na própria permanente dignidade e respeitar a permanente dignidade dos outros. Esta dimensão comunitária da dignidade humana faz compreender que não sou um ser isolado do resto da comunidade e que, portanto, não sou proprietário nem da minha própria vida nem da dos outros. A pessoa é essencialmente um ser de relação; considerá-la fora do contexto das suas relações vitais parece ser a consequência do individualismo que, nos nossos países ocidentais, rege cada vez mais o nosso ambiente cultural. Fazer da autonomia pessoal a justificação de um direito à livre escolha da sua morte consiste em cortar a pessoa da sua constitutiva natureza relacional com todos os outros.
É, portanto, esta rede de relações constitutivas da pessoa humana que impede considerar a eutanásia como um assunto entregue exclusivamente ao exercício da autonomia individual. Pelo contrário, a eutanásia interessa-nos a todos, porque somos todos afetados pelas decisões particulares de cada um. Não somos, com efeito, individualidades que coexistem na total indiferença relativamente às opções dos outros.
Mas somos livres, dir-se-á, e é verdade. Então, porquê não aceitar que cada uma tenha o direito de escolher a sua maneira de viver e de morrer? Esta questão exige uma reflexão sobre a liberdade humana. A liberdade tem dois sentidos; em primeiro lugar existe a liberdade de escolha, o livre-arbítrio; em segundo lugar, a liberdade consiste em realizar a sua existência na linha das suas opções. Ora, a realização das opções tem apenas sentido na medida em que o que se escolhe e realiza contribui para uma realização efetiva da própria existência. Deste modo, a escolha da eutanásia parece contraditória: escolhe-se algo que suprime a própria possibilidade de realizar a existência. A escolha da vida torna-se então supressão da própria possibilidade de escolher e de dar sentido à vida.
Traduzamos este raciocínio em termos concretos. Diz-se que o ato de eutanásia é um ato de plena liberdade. Ora, isso é errado: a eutanásia é, na maior parte das vezes, a expressão de uma ausência de capacidade de liberdade, na medida em que a liberdade existe para dar sentido à vida. Deste ponto de vista, a eutanásia traduz a incapacidade de encontrar um sentido para a vida. Ela manifesta a presença de um desespero face às circunstâncias de sofrimento, de abandono e de miséria.
Tais circunstâncias refletem situações que precisamente impedem o exercício da liberdade. Surgem quando também não existe o apoio para aliviar a pessoa no sofrimento que a invadiu. Esta reflexão faz compreender o motivo pelo qual a longa tradição da nossa cultura ocidental nunca valorizou o suicídio. Hoje, a eutanásia está assim a pôr em risco um dos dados mais preciosos inerentes à dignidade inviolável da pessoa. Com efeito, a liberdade é um ato de autorrealização e de capacidade de dar sentido àquilo que vai realizar a existência e não um ato pelo qual se suprime a si mesma.
Outros aspetos concretos confirmam esta tese. Os países tendo legislado a favor da eutanásia mostram que, pouco tempo após a aceitação de base, se caiu naquilo que se chama a “rampa deslizante”: após a eutanásia em fim de vida, aceitou-se a eutanásia por motivos psiquiátricos, tais como a depressão profunda, a eutanásia de crianças sem o parecer dos pais. Até onde levará esta “rampa deslizante”, senão para uma cultura de morte e não de vida? Além disso, não se pode compreender que o ato de eutanasiar seja compreendido como um ato médico: será que acompanhar até à morte se transforme em provocar a morte? Economicamente, não será que o primeiro beneficiário económico da eutanásia é o Estado, assim dispensado de acompanhar as pessoas até à sua morte natural? Estes argumentos, contudo, ultrapassam o quadro estritamente ético no qual esta breve reflexão se quis manter.
Michel Renaud* é membro da Academia das Ciências de Lisboa, Professor catedrático (aposentado) de Filosofia da UNL e membro (1991-2015) do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.