19 fev, 2020 - 18:00 • Maria João Costa com Redação
O escritor Valter Hugo Mãe mostra "apreensão" face à aprovação da despenalização da eutanásia por temer, nomeadamente, que isso se torne numa "porta a um progressivo incentivo a um certo suicídio".
"Vejo com alguma apreensão a proposta de despenalização da eutanásia porque me parece que o que tem acontecido em países que deram esse passo tem sido, sobretudo, a abertura de uma porta para um progressivo incentivo a um certo suicídio. Isso é que me horroriza", diz o escritor à Renascença, na Póvoa de Varzim, à margem da apresentação da 21.ª edição do festival "Correntes d´Escritas".
"Não me podendo opor à decisão de alguém terminar com a sua vida, não me podendo opor ao suicídio de alguém, não sou entusiasta de uma institucionalização de uma forma de morrer", prossegue.
"Acho que há uma falha da sociedade quando alguém se propõe morrer. Quando alguém quer morrer, falhamos todos, de alguma forma."
Questionado sobre se falta investir seriamente na rede de cuidados paliativos, Valter Hugo Mãe diz que "estamos muito longe de ter mecanismos de acompanhamento das pessoas que, por exemplo, estão em estado terminal, acompanhamento esse que poderia justificar a vida da pessoas até ao seu natural último instante".
"Por isso, tenho muita dúvida que tenhamos direito de institucionalizar a morte antes de fazermos um esforço coletivo, desde logo enquanto Estado, para acompanhar as pessoas até ao último momento com dignidade", argumenta.
Valter Hugo Mãe diz encarar com preocupação "uma certa facilidade com que algumas pessoas estão a lidar com o assunto, no sentido de quase entusiasticamente debaterem isto como um direito elementar, que não pode ser rebatido".
"Eu acho que pode ser rebatido", declara.
O escritor diz que "com a abertura à eutanásia, se acaba por dar um passo para uma certa penalização da terceira idade ou de qualquer pessoa que se encontre num estado de vulnerabilidade e de dependência".
"Contra isso lutarei sempre", garante Valter Hugo Mãe.
"Temos uma cultura que glorifica a juventude, mas é aberrante a forma como rejeitamos os mais velhos, como os apressamos, como não os entendemos nem estamos pacientes para as suas especificidades. Assusta-me, de facto, que possamos legislar no sentido de o Estado ser obrigado a proporcionar a morte. Porque, em última análise, tenho medo de que isso seja uma tácita denúncia daqueles que perduram, como se não devessem perdurar."
Questionado sobre se encara a possibilidade de recorrer à eutanásia, Valter Hugo Mãe diz que "gostaria de acreditar que, mantendo a vida, poderia encontrar - nem que fosse por epifanias, por instantes - momentos de redenção profunda. Mas isso faz parte da minha convicção. Faz parte ter uma certa espiritualidade em relação à vida".
"Com todas as dúvidas acerca da transcendência, eu vejo a vida como eminentemente espiritual e encontro justificação para estar vivo em ínfimos instantes no meio dos momentos mais tristes, inclusivamente. Por isso, tenho a sensação de que nunca optaria por me matar", remata Valter Hugo Mãe.