27 fev, 2020 - 00:00 • Graça Franco (Renascença) e Luís J. Santos (Público)
Para o presidente da Associação Portuguesa das Agências de Viagens e Turismo (APAV), Pedro Costa Ferreira, em entrevista ao Público/Renascença, que pode ouvir completa esta quinta-feira a partir das 13h, no que concerne o novo coronavírus, o importante são os “números” e os “factos”, seguir os conselhos aos viajantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e as indicações da Organização Mundial de Saúde. O resto é “ruído”, diz, lembrando que, tirando a China e parte da Itália, não há limitação às viagens.
Desde o fim-de-semana passado que há literalmente pânico na Europa, o número de países afetados está a crescer. França, Itália, agora Espanha, fala-se de muitos voos cancelados, muitos clientes que não sabem se devem ou não manter as suas viagens. É alarmismo ou é suficientemente mesmo para abalar o sector?
É um pouco tudo isso. É um pouco de pânico, de desconhecimento dos factos, mas também um pouco do sector a ser abalado. Tenho a sensação de que a primeira coisa que temos de fazer antes de começar a falar do coronavírus é sair da “discoteca”, tem muito ruído. O circo mediático que está montado à volta deste tema tem produzido um enorme ruído e esse ruído tem dificultado de sobremaneira a configuração, o enquadramento, a relativização de todo o problema. Vamos lá configurar o problema fora do ruído: o que temos à data de hoje e sabendo que os números são muito dinâmicos. Cerca de 80 mil infetados, cerca de 2700 mortos, o que indicia uma taxa de mortalidade francamente baixa, sobretudo se comparada com outros acontecimentos similares que tiveram taxas de mortalidade bem superiores. Temos quase 30 mil pacientes curados ou recuperados da infeção, coisa que o circo mediático nunca aponta. Esta terça-feira estava a olhar para uma televisão que falava de 80 mil infetados, 2700 mortos e mais nada. Há que acrescentar: e 30 mil recuperados. E depois há que relativizar e enquadrar. Por ano em Portugal deverão morrer cerca de 3 mil pessoas [de gripe], por ano em Itália – onde contamos, no momento em que estamos a falar, 12 mortos – morrem cerca de 8 mil pessoas de gripe. Quer isto dizer que não temos nenhum problema? Com certeza que não. Temos é que o enquadrar.
Compreendo que queira serenar, sendo o presidente da APAVT, mas esta terça-feira ouvimos um especialista mundial que voltou da China a dizer que o mundo não está preparado para uma coisa destas. Se o mundo não está preparado de acordo com um especialista, talvez seja bom o sector preparar-se.
Mas não estou a dizer que o sector não está preparado. Em primeiro lugar, estou a relativizar e a afastar o circo. Vamos falar de números. Isto não quer dizer que não tenhamos um problema. Mas qual é para já o principal problema? É o desconhecimento do vírus, do seu modo de transmissão, das suas consequências, do seu momento de transmissão, se é sazonal ou ao longo de todo o ano, é a imprevisibilidade. É a imprevisibilidade que provoca este caos e o pânico. Relativamente a esta imprevisibilidade acho que há um caminho, ou vários. Acho que há um caminho que é o certo, o da racionalidade, o da prudência, e eu até diria o da humildade. Racionalidade: vamos estudar, vamos acompanhar, vamos verificar os números, como é que se está a transmitir, onde é que isto vai parar. Por exemplo, na China as recuperações estão a acontecer a um ritmo muito mais elevado do que os novos infetados, é uma coisa boa. Mas na Europa estamos a começar um processo de transmissão que, provavelmente, se vai agravar nos próximos dias, o que é uma coisa má. Temos de ter alguma humildade relativamente a esta falta de conhecimento. É uma certeza que dentro de dois meses, muito provavelmente, nós não estamos todos enfiados em casa sem viver, mas podemos estar com as nossas vidas relativamente afetadas. É também se calhar uma certeza que não vamos ter uma vida normal, mas podemos ter uma vida muito próxima do normal.
E se tivemos uma viagem já comprada para a China? Se eu tenho uma viagem para daqui a quinze dias, que comprei numa agência de viagens. A agência está disponível para reembolsar-me da viagem?
Não está disponível, está obrigada legalmente e já o faz.
Mas isso para todo o ano ou para curto prazo?
Falar de reembolsos tem de ser caso a caso. Mas há alguns casos que podemos determinar. Reservas realizadas antes da eclosão do problema, que vão ser viajadas até final de março podem ser reembolsadas, estão enquadradas legalmente. Em junho, se calhar não podem ser reembolsadas já, temos de aguardar a evolução.
E quando é que se considera a eclosão do problema?
Julgo que é 31 de dezembro. Uma coisa é certa, uma viagem que foi reservada ontem não tem direito a reembolso hoje. Até porque uma viagem reservada ontem teve de ter da parte do agente de viagens, e é isso que ditam as boas práticas da agência de viagens, toda a informação ao cliente. O cliente vai ciente do que vai encontrar.
E reservada há oito dias para Itália?
Neste momento é cedo para dizer. Se for para o Norte da Itália, incluindo Milão, é muito provável que a resposta seja um reembolso. É provável – mas, uma vez mais, tem de ser caso a caso. Quando foi feita a reserva, qual o objetivo, porque é que a pessoa quer cancelar. Se for só um voo não tem direito a reembolso, tem pelo menos que ter dois serviços comprados numa agência de viagens. Só voo não tem direito a reembolso.
Nunca? Nem para a China?
Legalmente, não está enquadrado. O que está enquadrado pela lei das agências de viagens é dois serviços vendidos ao mesmo tempo, o voo mais hotel, o voo mais transfer. O que chamamos de viagens organizadas.
Continuamos sempre a falar de curto prazo, ou seja, ainda no “esperar para ver”, tanto pela associação, como as próprias agências. As decisões que referiu são um conselho da associação a todas as agências ou cada agência pode decidir de outra forma?
É mais do que isso. No caso da China, é um caso de força maior, há um desaconselhamento no portal das comunidades, portanto se a viagem é organizada e com mais do que um serviço tem direito a reembolso. E é preciso que se diga que as agências de viagens estão muito preparadas para isso porque têm seguros. Uma viagem a Itália, hoje, para Milão, se foi reservada antes da eclosão do problema e se vai ser viajada até final de março, essa viagem se organizada e reservada numa agência de viagens [está enquadrada]. Se foi reservada fora de uma agência não está enquadrada, não tem qualquer proteção. Os problemas das agências de viagens hoje são também as oportunidades das agências de viagens. É numa agência que o consumidor tem maior protecção.
Entre a razão e algum alarmismo, que é natural, porque nós olhamos para o mapa interativo, em que vemos cada caso a surgir e os casos a aproximarem-se e a rodearem Portugal, as pessoas naturalmente entram em algum alarme. Haverá gente já a cancelar viagens inclusive para a Europa, com receio do coronavírus? Essas pessoas têm direito a cancelar a viagem já?
Gostava de aproveitar falar-se em alarme, com ou sem razão, que alguém tem o dever aqui de citar a Organização Mundial de Saúde: a situação atual pede factos, não pede medo; pede ciência, não pede rumores; pede solidariedade, não pede estigma. Nós começamos por ter o estigma dos chineses, provavelmente no final deste processo vamos agradecer-lhes o modo como eles resolveram o problema em casa deles.
Gostava que em Portugal estivesse a acontecer alguma coisa, que o Governo tivesse já a adotar medidas preventivas, alguma coisa assim?
Vamos falar do efeito: a nível macroeconómico, à data de hoje, se falarmos de viagens, acho que o efeito não é significativo para o sector, teve efeito nas viagens para a China, que acabaram, nas viagens da China para cá, que acabaram. Esse é o efeito até à semana passada.
E qual foi o maior efeito? Os chineses que não vieram?
Apesar de tudo, foi os chineses que não vieram. Apesar do mercado emissor chinês ser importante, estar em crescimento, tem uma quota inferior a 2,5% no mercado português. E, portanto, teve o efeito que teve, é um período, vamos ver quando é que regressam. E se falarmos no destino China, ainda tem menos efeito. Porque não é um destino muito importante no mercado português e porque este momento não é um momento muito importante de férias dos portugueses. Claro que há problemas. Se me pergunta ‘Para a China não há reservas?’ - claro que não há reservas neste momento, há cancelamentos, haverá ainda alguns cancelamentos. Para a Itália esperamos reservas esta semana? Com certeza que não há reservas esta semana para a Itália, parece-me lógico. Vai haver cancelamentos? Vai haver muito diálogo, “posso ir?”, “devo ir"?, "devo mudar de destino?”, “posso mudar de altura?”, “posso esperar para ver?”, “até que altura é que posso esperar antes de ter ou não pagar alguma coisa sem reembolso?”, há todo esse diálogo, mas todo esse diálogo não inclui com toda a certeza reservas novas. Temos um problema para a Páscoa? Parece-me razoável dizer que sim, que o sector vai ter um problema na Páscoa. As grandes reservas iniciam-se agora durante março, a Páscoa é em abril e não se espera um pico de reservas com todo este ambiente, que ainda não chegou ao seu auge.
E o efeito Páscoa?
O efeito Páscoa vai ter um efeito negativo no sector. Porque obviamente se não há reservas e não há viagens haverá menos receitas, menos faturação.
A Páscoa vale quanto no sector? Vamos imaginar que a crise se agrava até à Páscoa, isso significa o quê?
A Páscoa até para o lazer é um ponto importante. Vamos dizer que ainda não é crítico. Se recuperarmos até ao Verão – e nós tivemos outras epidemias em que dois meses depois as coisas estavam clarificadas –, eu julgo que se nós tivermos um Verão normal, os efeitos sentir-se-ão, mas não serão tão significativos.
Consegue contabilizar?
Não consigo dar um número exato. Ainda é possível pensar num ano não absolutamente negativo, mas vão-se perder oportunidades na Páscoa e o Verão já veremos.
Estamos, como disse, na área da imprevisibilidade, não sabemos o que se vai passar nos próximos dias, nas próximas semanas. Se fosse meu agente de viagens e eu chegasse neste momento e perguntasse “Estou a pensar viajar Espanha, França, Itália, não sei, para a Páscoa, para o Verão, não sei. Vale a pena marcar a viagem? Que direito tenho se a cancelar?”
Temos de ter aqui alguma organização, não diria legal, mas pelo menos mental. Nós temos que seguir e seguimos com muito rigor as informações do portal das comunidades, essas são a base da existência ou não de uma possibilidade legal de reembolso, se o portal das comunidades não aconselha a viagem para determinada região ou se aconselha. A grande verdade é que o portal hoje, por causa do coronavírus, não aconselha para a China e para o Norte de Itália e Milão, algumas zonas do Sul, para pessoas jovens. Fora essas duas regiões hoje não há uma limitação às viagens. Os ministros da saúde de Itália e dos países que com a Itália fazem fronteira reuniram e decidiram que as fronteiras continuam abertas. A OMS diz que não há restrições às viagens nem ao comércio.
Passando para o Turismo como mola do crescimento nos últimos anos, ainda com o coronavírus: se esta crise atingir o Verão, ou se prolongar para além do Verão, acha que o motor do nosso crescimento gripa?
Não sei se gripa, mas vai reduzir a velocidade. Nos piores cenários, todo o modelo económico mundial vai ter dificuldades. À partida, e à frente de todos, o turismo, porque é a circulação de pessoas e, portanto, se o turismo terá dificuldades nos piores cenários, também em Portugal teremos de ter uma redução da velocidade. Não estou a dizer que vai acontecer. No pior cenário, ou em vários cenários mais negativos, com certeza que sim.