30 mar, 2020 - 07:01 • Inês Rocha
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Desde que entrou em vigor o estado de emergência em Portugal, a 18 de março, as empresas de entregas de comida como a Uber Eats e a Glovo, bem como as cadeias de restaurantes com entrega ao domicílio, como a Pizza Hut, Telepizza ou a Domino’s, reforçaram as regras de higiene e distanciamento social nas entregas. Mas o que une as primeiras, apps de telemóvel com "parceiros" em vez de funcionários, e as segundas, empresas com contratos de trabalho, termina aí.
João Sousa (nome fictício), 55 anos, é estafeta há 13 na Pizza Hut. Recentemente, aderiu também à Uber Eats, para ganhar algum dinheiro extra nas horas vagas – “a vida não está fácil para ninguém”, desabafa.
Em entrevista à Renasceça, João faz uma distinção clara entre as duas empresas.
“Na Pizza Hut tenho contrato de trabalho, tenho um local físico para mudar de roupa, tomar banho, tenho um cacifo, tenho Segurança Social, tenho seguro de acidentes de trabalho, que já por várias vezes tive de ativar, porque já tive vários acidentes”. João diz ter também “uma espécie” de subsídio de alimentação – uma pizza pequena por dia.
Já na Uber Eats, “não temos nada disso", contrapõe. "É carne para canhão. Não há qualquer filtro na contratação”, não há seguro, não há local de trabalho. “Estamos na rua à espera que nos caia um pedido. É cada um por si.”
Na Uber Eats e na Glovo, qualquer pessoa pode fazer entregas; basta inscrever-se na aplicação como estafeta e apresentar alguns documentos.
A Uber Eats e a Glovo não fornecem diretamente material de proteção aos seus estafetas, como fazem as cadeias de restaurantes com entrega incluída, como a Pizza Hut, Telepizza ou Domino’s – ainda assim, recomendam-lhes que comprem o seu próprio material.
No caso da Uber Eats, a empresa disponibiliza-se para cobrir os custos, mediante apresentação de fatura, até 25 euros a cada estafeta. Na Glovo, a recomendação não passa disso mesmo.
António Santos, 50 anos, trabalha na Uber Eats há dois anos. Não tem máscara nem luvas, mas em tempos de pandemia anda sempre com um frasco de álcool na mota, para se desinfetar. Costuma, ainda assim, andar com um pano a tapar a boca e diz afastar-se o máximo possível do cliente ao fazer a entrega.
O brasileiro Victor de Sousa Ferreira trabalha há três meses nas duas empresas. Faz mais serviços para a Uber Eats, porque a Glovo tem horários mais limitados. Na Uber Eats, pode trabalhar sempre que quiser – “tenho mesmo de trabalhar, não posso ficar em casa”, partilha.
O estafeta diz andar com luvas e máscara, que comprou com a ajuda da Uber Eats, mas não tem desinfetante. “Está caro e difícil de encontrar”, diz à Renascença.
Ainda assim, quando faz entregas no McDonald’s (um dos restaurantes onde há mais procura), há gel desinfetante à disposição dos estafetas.
Domingos Ribeiro trabalha há dois anos na Uber Eats – um extra, que acumula com o trabalho noutra empresa. Diz ter “tudo – máscara, luvas e gel desinfetante”. Mas o material foi-lhe fornecido pela empresa onde trabalha a tempo inteiro. Nem todos o fazem, revela à Renascença. "Há pessoal que não compra, não vou mentir."
A Renascença questionou a Uber sobre o facto de os colaboradores terem de comprar o próprio material de proteção, numa altura em que a oferta é pouca e os preços estão a disparar.
Manuel Pina, diretor da Uber em Portugal, diz que “a dificuldade de obtenção deste material em massa se calhar é ainda mais difícil. É mais fácil comprar doses unitárias em farmácias do que comprar em massa”, pelo que optaram pela via de reembolsar os parceiros em vez de lhes fornecerem diretamente o material.
O diretor da Uber garante que a empresa faz por veicular, entre os colaboradores, todas as recomendações da DGS. No entanto, questionado sobre como garante que as regras são cumpridas, o responsável assume que “não podemos ter uma pessoa dentro de casa de cada pessoa cada vez que há uma encomenda”. Nesse sentido, apela a que os clientes os informem sempre que notarem alguma situação “menos regular” ou quando não estiverem satisfeitos com o serviço.
“Nós temos a capacidade para atuar” mediante uma denúncia, lembra.
Entre as maiores empresas de entrega de comida, todas adaptaram as suas regras devido à pandemia de Covid-19. Uma das medidas mais comuns é a “entrega sem contacto”.
Telepizza, Pizza Hut e Domino’s optam agora por este tipo de entrega. Sempre que recebem uma encomenda, questionam o cliente se pode vir receber o pedido à porta, no caso de ser um prédio. Caso não possa, o estafeta sobe mas deixa o pedido à porta e afasta-se.
“Temos de ficar a mais de dois metros mas a ver, porque há quem se aproveite e roube”, explica à Renascença João Silva, que trabalha na Pizza Hut.
Ainda assim, há quem não desça. “Nesses casos temos de subir, não deixamos de entregar o pedido ao cliente”, diz o estafeta.
Também a Uber Eats e a Glovo incentivam as entregas sem contacto. No entanto, esta é uma opção que o cliente tem de ativar na aplicação, ao fazer o pedido. Ainda assim, o próprio estafeta, se desejar, pode também pedir ao cliente que a entrega seja feita desta forma.
“As pessoas já estão mais habituadas, pedem para deixar à porta. Nós também podemos fazer isso, mandamos mensagem e deixamos o pedido à porta”, explica o estafeta da Uber Domingos Ribeiro.
Todas as empresas recomendam aos clientes que optem pelo pagamento “online” ou com multibanco, que prometem desinfetar a cada pedido.
Quase todos os estafetas com quem a Renascença falou dizem que a pandemia de Covid-19 trouxe mais movimento ao negócio.
Numa semana, Victor de Sousa Ferreira consegue juntar cerca de 450 euros – mas para isso tem de “trabalhar sem parar” nas duas empresas.
Na Glovo, particularmente, o serviço aumentou muito, porque a empresa faz entregas também de supermercados. Já na Uber Eats, que decidiu eliminar a taxa de entrega até ao dia 3 de abril (o atual decreto do estado de emergência expira no dia anterior), os pedidos também aumentaram muito.
“Há muita gente a procurar”, diz Domingos Ribeiro. Contudo, o estafeta diz continuar a ver grandes filas para o drive-thru da McDonald’s. “Acho mal é que as pessoas não podem sair de casa e está aqui sempre uma fila enorme para o drive-thru. A taxa é grátis, podiam encomendar”, afirma.
Na sexta-feira, a Uber anunciou que vai passar a entregar também produtos de conveniência e de supermercados, um serviço até agora só garantido pela Glovo. A Uber Drop-Off, o novo produto, vai permitir que os utilizadores utilizem a plataforma como um sistema de entrega em casa.
Em entrevista à Renascença, Manuel Pina, diretor da Uber em Portugal, explica que, com a nova oferta, a empresa acredita que consegue ajudar três partes: o motorista, a compensar parte do rendimento perdido nesta fase; o comércio local ou os retalhistas, que podem também ter constrangimentos na capacidade para entregar, já que os pedidos online têm aumentado bastante; e também acrescentar valor aos utilizadores, que não precisam de sair de casa para comprar os bens essenciais.
Sobre a higiene e segurança no transporte destes produtos frescos, o responsável garante que “em todas as parcerias que fazemos, trabalhamos muito perto para partilhar as melhor práticas de acondicionamento e manuseamento dos bens alimentares”.