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Opinião Covid-19

A pandemia dos números e o porquê do jornalismo

31 mar, 2020 - 16:10 • Maria João Cunha *

Precisamos saber, denunciar, refletir, encontrar sentidos e descortinar a verdade. Até Cristina, que provavelmente nunca antes fez uma denúncia. Há um despertar coletivo da mente que nos tornou a todos mais preocupados, mais interessados, mais curiosos. Mas sobretudo mais necessitados de boa informação.

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Uma farmacêutica a trabalhar no Douro termina o turno, abre o email e decide enviar um alerta. Não tem álcool disponível e, como farmacêutica enraizada numa das mais importantes regiões vitivinícolas do mundo, não compreende a dependencia do álcool importado de França num país com tanta capacidade para destilar, nem por que razão as farmácias não podem ainda produzir o seu próprio álcool. "Porque hoje é um vírus, depois serão dois". E propõe a matéria para investigação jornalística.

Do outro lado, numa caixa de correio virtual e sem rosto ou nome de pessoa, há um jornalista que recebe a informação e decide procurar respostas. Cristina não imagina o que acontece depois de premir o botão "enviar", mas espera que a sua denúncia seja lida, ouvida, levada a sério. Cristina só pode esperar que as suas preocupações sejam tidas em consideração por quem decide o que é ou não é notícia, o que é ou não é relevante para todos e para cada um. Mas ela, que é farmacêutica, sabe que é. E acabou de cumprir um dever cívico.

Nunca as caixas de correio dos órgãos de comunicação social receberam tantas denúncias, dúvidas e pedidos. Nunca os seus leitores, ouvintes, espectadores, seguidores se mostraram tão interessados em respostas e em tornar-se parte colaborante e activa. A maior parte de nós assiste ao fluir noticioso dos dias de forma passiva, conduzidos à velocidade anestesiante do deslizar do dedo pelo "feed" da rede social ou da escuta alheada do ruído televisivo, sempre com os olhos pregados no segundo ecrã - no tal "feed" ou no "chat" de grupo.

Mas não agora, não neste momento. Precisamos saber, denunciar, refletir, encontrar sentidos e descortinar a verdade. Até Cristina, que provavelmente nunca antes fez uma denúncia. Há um despertar coletivo da mente que nos tornou a todos mais preocupados, mais interessados, mais curiosos. Mas sobretudo mais necessitados de boa informação.

Dia após dia é tornado público um documento em formato PDF que é usado como meio para divulgar oficialmente os números da pandemia em Portugal. É servido aos jornalistas como prato feito do dia, pronto a engolir sem mastigar - e preferencialmente questionar. Dia após dia traz incongruências, números que não se acertam, desmentidos e correções, até mortes que não se verificaram. Já mudou de apresentação mais do que uma vez, já incluiu informação que entretanto desapareceu, já justificou de todas as formas a ausência de valores que deixam a mais básica das operações matemáticas sem resultado certo.

A acompanhar o boletim, uma conferência de imprensa - para esclarecer. Mas em que nada disto se esclarece. Com duração limitada a 20 minutos e espaço para uma mão cheia de perguntas de órgãos de comunicação social sorteados para inscrições à vez e de forma rotativa. Mas é preciso questionar muito mais. Os pedidos de esclarecimento são remetidos insistentemente todo o dia, por todas as vias, e boa parte das vezes ficam sem resposta. Eles hão-de desistir, alguém pensará. É a velhinha estratégia de "spining" que tantas vezes produz os efeitos desejados, mais ainda em redações assoberbadas, geografica e organizacionalmente pulverizadas (efeitos do teletrabalho) e com jornalistas pressionados pelo tempo e pressionados para dar resposta ao turbilhão informativo.

(Enquanto isto, no nicho de uma rede social qualquer, algum agente interessado da sociedade civil se ocupará de dizer umas verdades sobre a incapacidade crónica dos jornalistas em fazer jornalismo e perceber o que é notícia.)

Também a comunidade científica clama por mais transparência e acesso aos dados, porque podem ajudar a prever a evolução do surto e ajudar a tomar as decisões que a todos importam e sobre todos impactam. Os números e as histórias que contam importam - e muito. Porque não são apenas números, somos todos nós - as nossas famílias, pais, avós e filhos, amigos e conhecidos, camaradas.

Tudo é novo, tudo é absolutamente novo a todos os níveis. Talvez menos as velhas estratégias. É humanamente impossível dar conta de tudo o que está a acontecer, porque, de repente, tudo é notícia. E o vórtex engole tudo e todos - os jornalistas que não se cuidem e na queda arrastam um edifício em escombros de erros, inconsistências e meias verdades capazes de enganar, distrair e disseminar o pior dos vírus - o da desinformacao colectiva.

Chamam-lhe guerra, mas à guerra um jornalista escolhe ir. E aqui, hoje, não há escolha.

Porque o relato indireto não é trabalho jornalístico. Quem relata está condicionado, vive o que relata, nunca pode estar a fazer jornalismo na vez do jornalista. "Jornalista não fica em casa", ouvimos orgulhosamente dizer quem nos lidera, quando é junto dos outros que nos é exigido que estejamos. É missão.

Porque replicar números e mapas não é trabalho jornalístico. Encontrar notícia nos números, analisá-los, explorá-los e pô-los em perspectiva é trabalho jornalístico. Mas para isso é preciso dados desagregados, verdadeiramente transparentes, por uma vez.

(Afinal, em quantos registos de contratos no Base.gov se especificam questões contratuais do que é celebrado entre o Estado e os seus fornecedores? Em quantas séries de dados do portal da transparência do SNS se consegue encontrar a informação que realmente interessa? Afinal, quantos ventiladores há em Portugal? - andámos a perguntar insistentemente, até que alguém os contabilizou, um a um - um processo que ia demorar horas, ao 12º dia de surto, e nos deixou em suspenso por dias.)

Não precisamos de transparência de fazer de conta. O país precisa da verdade.

Cristina precisa de um problema resolvido - por si, pelos seus filhos, pela sua comunidade; e centenas, milhares, milhões de ouvintes, leitores, espectadores, seguidores precisam de esclarecer as suas dúvidas, saber como reagir, o que prever e evitar no meio de uma pandemia e com o país em estado de emergência.

É em alturas como esta que o jornalismo se afirma mais do que nunca. Os jornalistas não se servem a si próprios, estão aqui para servir. Sempre. Sem intermediários, sem medo, sem moralismos, com verdade.

*jornalista, chefe de redacção.


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  • 31 mar, 2020 20:02
    Por ser leitor e ouvinte diário é que gosto de " comentar " sobre tudo aquilo que a vida me ensinou. Pelo que acabei de ler, em cima, direi, assim sim. Contudo há algo que eu gostaria de passar. A Covid-19 ataca sem dó nem piedade tudo e principalmente os Idosos e quem não o sendo possa estar nas chamadas doenças crónicas. Ora se eu fosse ALGUÉM fazia o seguinte: o SNS através dos Centros de Saúde e Hospitais têm ACESSO DIRETO aos Doentes com doenças crónicas. Como é fácil nos dias de hoje, telefonicamente, contactava pessoalmente cada UTENTE para saber qual a situação em que cada um se encontrava. Esse contato seria efetuado pelos Funcionários que ficaram disponíveis pelo encerramento de vários Serviços, como por exemplo Consultas Externas. Também há outros Funcionários que estão disponíveis para fazerem essa tarefa, pois é fácil LISTAR esses UTENTES ( Cardiologia, Pneumologia, Diabetes ), menciono estas porque em princípio há outras que são seguidas pela sua gravidade. Era isso que eu já tinha começado a fazer se fosse ALGUÉM. Também se fosse ALGUÉM sabia sem grande margem de erro qual o STOCK do material INDISPENSÁVEL numa Sala de Emergência, numa Unidade de Serviços CORONÁRIA e CUIDADOS INTENSIVOS, isto porque há a chamada GESTÃO de STOCK. Como sei, porque sei, que isto não está ao alcance de TODOS e TODAS que estão á frente dos Serviços não fico nada admirado por os números não BATEREM CERTO. Espero que a Covid-19 passe depressa e sem grande estrago. Saúde para todos.
  • 31 mar, 2020 17:51
    Quando a pademia passar eu gostava que fosse possivel fazer um levantamento dos mortos" que morreram por causa do excesso de comunicacao social!
  • 31 mar, 2020 17:41
    Voces devem estar malucos !

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