15 abr, 2020 - 10:00 • Maria João Costa
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A eventual implementação de uma aplicação de telemóvel para rastrear a Covid-19 seria como ter uma câmara em cada casa, “catastrófico para a proteção de dados" e de "eficácia limitada", alerta o vice-presidente da Associação D3 - Defesa dos Direitos Digitais, Ricardo Lafuente.
“Se o Governo agora dissesse que tínhamos de instalar uma câmara à porta, ou até dentro de casa, para verificar que não estamos a violar a quarentena, seria uma medida autoritária”, afirma o professor e ativista digital, preocupado com o perigo da vigilância invisível para controlar o novo coronavírus.
Em declarações à Renascença, Ricardo Lafuente questiona se a “vigilância tecnológica”, como a que pode ser gerada pela criação de uma aplicação de telemóvel que rasteie movimentos para conter a pandemia da Covid-19, “não sendo visível”, “tira um pouco a carga” desse perigo do acesso a dados privados.
“O que significa estarmos a ceder esse retrato da nossa vida? O que vai acontecer depois aos dados?”, interroga o catedrático, que levanta muitas dúvidas sobre a privacidade de uma aplicação móvel que possa vir a ser criada no atual contexto pandémico.
A questão coloca-se numa altura em que a Comissão Europeia deu uma semana aos Estados-membros da União Europeia para desenvolverem uma “abordagem comum” no rastreamento de dados pessoais anonimizados, para assim ajudar a conter a evolução da pandemia do novo coronavírus e também promover o distanciamento social.
Bruxelas quer, assim, criar regras comuns para o uso da tecnologia, tal como já acontece em outros países no mundo.
Perante a porta deixada aberta pela posição da Comissão Europeia, a Associação D3 avisa que “é preocupante o otimismo com que se tem abordado o aparecimento desta possibilidade tecnológica”.
Lafuente olha para o exemplo da China, onde aplicações do género já estão a ser usadas para vigiar a população, e diz “que quanto à questão dos direitos dos cidadãos na China, estamos conversados!”. Já sobre o caso de Singapura refere que “é outro caso em que existe um sistema político a que não podemos chamar democrático”.
As dúvidas sobre a privacidade estão também a ser levantadas pelo Governo português. O secretário de Estado da Saúde, disse esta terça-feira, em conferência de imprensa, que “é precoce admitir a possibilidade” de uma aplicação que faça uso da geolocalização.
António Lacerda Sales defende que, primeiro, devem “ser observadas as experiências de outros países”, até porque, diz o governante, um sistema tecnológico do género “pode interferir em questões de privacidade”.
“É algo inédito, o estar-se a acumular uma base de dados com o ‘onde é que alguém esteve’. Esteve ‘próximo de X ou de Y?’ Em termos de proteção de dados é catastrófico”, avisa Ricardo Lafuente, em declarações à Renascença.
O vice-presidente da D3 lamenta esta ideia de “triunfalismo tecnológico” como a resposta mágica para o atual problema global de saúde e chama a atenção para outra questão: “as operadoras já têm acesso a uma data de dados, embora com esta proposta seria muito mais granular. O problema é que se está a ter já este debate, sem se discutir quem está a fazer a aplicação? Para onde estão a ser enviados os dados? Quem é que está a fazer a análise? Quem tem acesso? Quanto tempo vão ficar disponíveis?”
Lafuente vai mais longe e traz, novamente, o exemplo de Singapura, para dizer que os próprios autores da aplicação que está a ser usada referem que esta, “não substitui qualquer método existente para perceber a propagação do vírus. Não é uma solução holística, é um complemento”.
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O professor e designer também “adorava que encontrassem uma solução técnica para sair de casa” em segurança”, mas levanta outra dúvida sobre a eficácia de uma aplicação para minimizar a propagação do novo coronavírus: “o acesso é para quem tem um smartphone, e temos toda uma camada da população que vai ficar de fora. Eu não me atrevo a presumir eficácia. Uma aplicação que deixa de fora uma fatia da população, acho que é de eficácia limitada”, sublinha.
Há mais dúvidas tecnológicas lançadas sobre a eventual utilização de uma aplicação de telemóvel. Este responsável da Associação de Defesa dos Direitos Digitais explica que a proximidade entre indivíduos é medida através do “Bluetooth” do telefone.
“Há um potencial enorme para falsos positivos e negativos, porque o telemóvel não regista a que distância as pessoas estiveram” e dá um exemplo: podemos estar próximos de um vizinho porque temos uma parede a separar, mas nunca termos contatado com esse vizinho.
Esta georreferenciação cria também, nas palavras de Ricardo Lafuente, “uma base de dados de localização individuais a um grau de pormenor absolutamente sem precedentes e de uma invasão de privacidade total”.
A Renascença tentou contatar a Comissão Nacional de Proteção da Dados (CNPD) sobre o assunto, mas sem sucesso. O responsável da D3 considera que “a Comissão seria uma entidade crucial” no debate, mas considera-a “desprovida de meios para dar resposta a isto”. A CNPD, no seu entender, deveria ter “meios para entrar com mais dentes neste debate. Para que este debate não fosse só tecnológico ou político”.
A Renascença contatou as três principais operadoras de comunicações que estão no mercado nacional.
A NOS recusou comentar a hipótese da criação de uma aplicação, europeia ou nacional, para rastreio de localização para prevenir o alastrar da pandemia. Fonte da MEO disse que a operadora aguarda indicações de Bruxelas.
Já a Vodafone respondeu por escrito sobre uma possível participação numa eventual iniciativa que possa ajudar a recolher informação sobre a propagação/contenção da pandemia. A empresa confirma que “a Comissão Europeia solicitou ao Grupo Vodafone e a outras operadoras de telecomunicações que ajudassem a entender a eficácia das estratégias de contenção de vírus, tendo a Autoridade Europeia para a Proteção de Dados aprovado o uso geral de dados anónimos e agregados para este fim”.
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A Vodafone indica que “não existe, à data, nenhum acordo fechado”, contudo garante a disponibilidade para colaborar em três áreas. Por um lado, a “utilização dos dados anonimizados da sua rede móvel, bem como da plataforma Vodafone Insights, para traçar as mudanças do movimento populacional como resultado das políticas de contenção”; por outro lado a “disponibilização de um painel desenvolvido pela Vodafone e pela Universidade de Southampton, que permite aos Governos modelizar como a COVID-19 se pode propagar em diferentes cenários e visualizar o potencial impacto de decisões governamentais, tais como a restrição da mobilidade da população”.
No esclarecimento enviado à Renascença a operadora refere, também, o “cruzamento dos dados anonimizados e agregados das redes móveis Vodafone com outro tipo de informação, por exemplo, padrões climáticos”.
A operadora de telecomunicações diz mesmo que “o Grupo Vodafone está já a gerar insights de mobilidade em Espanha e Itália, prevendo fazê-lo também em outros países europeus, incluindo Portugal, assim que tal se mostrar exequível”.
Quanto à introdução deste tipo de aplicações, sejam elas anónimas ou não, e que podem vir a analisar padrões de mobilidade, a D3 avisa que estamos perante “uma transição social sem precedentes” e desconhecemos ainda “as implicações práticas” que terão.
Os Estados-membros têm, até 31 de maio de comunicar a Bruxelas as medidas que irão adotadas para garantir a proteção dos dados pessoais. O executivo comunitário, olha para uma ferramenta tecnológica também como um recurso para ajudar numa estratégia de abertura das sociedades onde o confinamento tem sido ponto de ordem.