21 mai, 2020 - 08:00 • João Cunha
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A Câmara de Loures comprou 120 mil máscaras sociais para a Covid-19, através de ajuste direto, a uma agência de viagens que serviu de intermediário no negócio com um fabricante em Portugal.
A autarquia pagou 2,77 euros por cada máscara, um valor inflacionado e "exagerado", conclui o vereador socialista Nuno Ricardo Dias. A adjudicação não está no Portal da Contratação Pública, como obriga a lei. Responsável pela agência de viagens não vê nada de estranho, a câmara garante que todos os requisitos legais foram cumpridos.
A agência de viagens Catchawards surge como intermediário neste negócio e com preços que, aparentemente, estão inflacionados. A mesma empresa, para outros clientes e para o mesmo tipo de máscara, apresentou orçamentos com propostas muito mais em conta. No caso da Câmara de Loures, teria permitido poupar dezenas de milhares de euros em dinheiros públicos.
No Portal da Contratação Pública ainda não foi publicada qualquer cópia do contrato ou outros documentos, como manda a lei, mas está registada a adjudicação direta, a 8 de maio: a aquisição por parte da Câmara de Loures de 120 mil máscaras sociais, em tecido, com impressão do logotipo do município, por 332 mil e 400 euros.
Contas feitas, são 2,77 euros por cada máscara, numa encomenda que teria de ser entregue em cinco dias. O prazo não foi cumprido, já que as máscaras sociais foram entregues em nove dias.
O equipamento de proteção foi encomendado à Catchawards, uma agência de viagens do concelho, que se define também como empresa de logística desportiva, produção de eventos, animação turística e hoteleira.
Nas propostas de orçamento que envia aos clientes, a Catchawards garante “estar neste momento a produzir em máscaras certificadas”. Contudo, não consta da lista do CITEVE - o Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário como empresa certificada para as produzir.
A agência de viagens e eventos diz que trabalha em parceria com uma empresa certificada, que prefere não identificar, uma fábrica nacional que opera em exclusivo para a Catchawards.
Alexandre Santos é o responsável pela Catchawards. Em declarações à Renascença, assegura que não está a fazer nada de ilegal, que apenas se adaptou ao quadro da pandemia, tal como fizeram tantas outras empresas.
“Não acho estranheza nenhuma. Acho, isso sim, a questão estranha, vinda das poucas pessoas que neste momento têm a ousadia de criticar ou de opinar sobre alguém que se consegue erguer dentro da lei, com tudo o que a lei permite, e com todos os predicados”, afirma o empresário, que nos seus perfis nas redes sociais se apresenta também como gestor de logística desportiva no Benfica.
A agência de viagens “reergueu-se, transformou-se, criou as suas próprias mais valias e correu atrás das oportunidades. E hoje, não é só a Câmara de Loures, são muitas as câmaras municipais que nos consultam e que nos adjudicam, tal como a Proteção Civil, grandes empresas, grandes entidades nacionais e até internacionais”, sublinha Alexandre Santos.
Assim sendo, o rosto da Catchawards não tem dúvidas: o país “deve estar orgulhoso destas empresas que conseguem dar a volta e conseguem-se erguer”.
Em resposta por escrito à Renascença, a Câmara de Loures diz que todos os requisitos legais foram cumpridos no negócio de compra de máscaras sociais e que se tratou de um ajuste directo igual a tantos outros.
Em relação aos preços praticados pela empresa, aquando da adjudicação directa, o município liderado por Bernardino Soares refere que "os preços disponíveis no mercado eram superiores aos que hoje se praticam", alegando a Câmara de Loures que não é legitimo fazer comparações com o momento actual.
A autarquia não esclareceu que critérios foram levados em conta na escolha desta empresa e quem no executivo municipal a escolheu. Não refere se houve ou não algum contacto com empresas têxteis nacionais que produzem estas máscaras para consulta de preços praticados nem porque razão só em maio decidiu adquiri-las.
O Portal da Contratação Pública não tem cópias publicadas desta adjudicação, como obriga a lei. Nuno Ricardo Dias, vereador socialista da autarquia de Loures, considera esses dados, previstos no contrato, fundamentais, porque, garante: os preços praticados nesta adjudicação direta estão inflacionados. Foi a conclusão a que chegou depois de ter ele próprio pedido uma proposta de orçamento à mesma empresa.
“Fiz uma pequena consulta ao mercado e posso-lhe dizer que esta mesma entidade, para o mesmo tipo de máscaras, faz o preço de 2,35 euros. Já com impressão”, conta à Renascença.
Contas feitas, são menos 42 cêntimos em relação aos 2,77 euros que a Câmara de Loures pagou por unidade, o que em 120 mil máscaras representaria uma poupança de mais de 50 mil euros. Ou mais, porque aumentando a escala para além das 500 máscaras, o normal é diminuir o preço unitário. O que neste caso não terá acontecido.
“Esta mesma empresa”, sublinha o socialista Nuno Ricardo Dias, “faz as mesmas máscaras, sem a dita personalização, por 1,80 euros, porque estas têm um logotipo a dizer Câmara Municipal de Loures”. Assim, só a personalização, a custos do município, ficou a quase mais um euro em cada máscara, para além do custo da própria. “Parece-me exagerado para aquilo que foi adquirido”, refere.
Por isso mesmo, Nuno Ricardo Dias estranha não só a escolha desta agência de viagens para fornecer as máscaras como o facto de não ter sido feita uma consulta aos vários fabricantes das mesmas.
“Por que é que o município não foi diretamente ao fornecedor? Só para lhe dar nota, 120 mil máscaras foi mais do que as máscaras adquiridas pelo município no concurso da Área Metropolitana de Lisboa”, adianta o vereador.
Se a consulta tivesse sido feita, a aquisição direta ao produtor, sem intermediários, sairia mais em conta. Por isso, Nuno Ricardo Dias não hesita dizer que esta adjudicação direta "coloca em causa a utilização de dinheiros públicos".
Na batalha contra a Covid-19, várias câmaras por todo o país estão a adquirir por ajuste direto máscaras sociais para distribuição gratuita pela população ou para entidades municipais. Os preços praticados em alguns contratos por ajuste direto ficam abaixo dos 2,77 do negócio de Loures.
Em Vila Nova de Gaia, por exemplo, foram adquiridas 350 mil máscaras comunitárias reutilizáveis, a 1,60 euros a unidade, num contrato de 560 mil euros, indica a informação disponível no Portal Base. Já a Câmara do Barreiro conseguiu 90 mil máscaras a 1,55 euros cada, segundo a mesma base de dados oficial.
Já esta quarta-feira, a Câmara de Loures adquiriu mais 50 mil máscaras cirúrgicas a 58 cêntimos a unidade, a uma empresa imobiliária, a Vérice Léguas, num contrato de 29 mil euros.
O negócio em causa é um pouco “estranho, mas não é necessariamente surpreendente neste quadro de pandemia”, indica João Paulo Batalha, presidente da Associação Transparência e Integridade.
Têm sido várias as empresas “a reinventar-se para facilitar esses contactos e conseguir essas importações”, sublinha o ativista anticorrupção. Sendo certo que, neste caso, não é de importação que se trata. É de um intermediário para um negócio feito com um produtor de máscaras nacional.
O que seria importante era que quem faz este contrato “publicasse uma pequena ficha informativa sobre os dados do contrato, como o contrato propriamente dito e outra documentação (como o caderno de encargos) para se perceber porque é que a câmara fez estas escolhas, porque é que assume o risco de contratar uma empresa que está a negociar fora da sua área de negócio normal”, defende João Paulo Batalha.
Para além de ser uma obrigação legal, “faz falta nós termos acesso a esses documentos para perceber porque é que se fazem determinadas contratações, os motivos destas escolhas e ajustes diretos e as condições em que o material é fornecido”, sublinha o presidente da Associação Transparência e Integridade.
[notícia atualizada com a reação da Câmara de Loures]