04 jul, 2015 - 10:33 • Marta Grosso (texto) e Conceição Sampaio (vídeo)
“Não é um livro centrado em mim, no que fiz”, afirma Catarina Furtado. Em "O que Vejo e Não Esqueço", a apresentadora de televisão revisita a sua infância e juventude, conta episódios que a marcaram e segue depois para a sua vivência enquanto embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a População.
Quis partilhar experiências e contribuir para a reflexão de todos sobre o mundo em que vivemos e sobre as acções de várias “pessoas extraordinárias e anónimas”.
Este livro parece ser só sobre as viagens que fez e o que viu lá fora, mas não é.
Por isso é que ele não se chama “O que Fiz”. Não é um livro baseado em mim. É baseado naquilo que me fez o que sou hoje, mas numa perspectiva de estar atenta àquilo que os outros fazem para o bem da humanidade. Por isso é que ele começa por uma parte mais autobiográfica, em que explico porque é que tenho este “chip”, esta conduta e esta consciência muito grande de que partilhar este mundo implica termos também alguns deveres cívicos.
Tive de fazer um enquadramento: explicar às pessoas que fui educada assim, que pessoas na minha vida foram determinantes para que tivesse semeado esta minha maneira de encarar o mundo. Depois, a segunda parte é o que eu vi os outros fazerem. Quero que conheçam muitas pessoas anónimas que, quer em Portugal quer nos países em desenvolvimento, fazem coisas extraordinárias em prol do bem dos outros.
Nunca a vimos expor muito a sua vida privada e neste livro fá-lo.
Sim. Há 25 anos que comecei a fazer televisão e uma das regras, para mim própria, sempre foi manter longe aquilo que é mais meu. Os meus filhos nasceram de mim e do pai deles, mas não são meus. E eu acho que tenho de preservar isso.
Propus-me a escrever mais sobre a minha vida só relatando episódios reveladores das coisas que fui vendo e não esquecendo e que me fizeram querer partilhar com o público, por um lado, inspirando, por outro informando, por outro dizendo que eu era pequenina e isto aconteceu-me.
Acaba por ser também um pouco um modelo para as pessoas que a seguem.
Isso é complexo, porque não quero nada ser o exemplo para as pessoas. Quero muito é partilhar aquilo que eu trago da minha vivência, da minha experiência enquanto embaixadora do Fundo das Nações Unidas para a População há já 15 anos, mas também das minhas reportagens, dos documentários dos "Príncipes do Nada", com o Ricardo Freitas, na RTP. O que quero muito é que elas não fiquem só para mim – apesar de num programa de televisão essas vivências serem divulgadas, num livro elas ficam para sempre. Não quero ser um exemplo. Quero partilhar e abrir algumas janelas para as pessoas.
Se calhar, estou a ser pretensiosa no sentido de que espero que o livro inspire, mas queria muito que o livro inspirasse todos nós para que, sejam quais forem as nossas possibilidades, tenhamos um olhar mais solidário uns com os outros. As coisas já estão tão terríveis, já há tantas atrocidades aos direitos humanos todos os dias… Mas eu continuo a acreditar no ser humano, mesmo.
Porquê?
Porque tenho de. E porque tenho tido provas muito evidentes de pessoas extraordinárias e anónimas. É um dos motivos pelos quais escrevi o livro: para dar essa atenção a essas pessoas. São elas que me devolvem essa crença. Porque, de facto, há muitas coisas que mudaram para melhor.
Não podemos olhar apenas para aquilo que é mau. Os meios de comunicação social – e não só portugueses – têm muita tendência para só sublinhar o que é realmente negativo. Existem guerras terríveis, mas também existem feitos inacreditáveis, erguidos por pessoas extraordinárias, para as quais deveríamos olhar. Há coisas que não vão mudar. O ser humano constrói um mundo de terror todos os dias, baseado em muitas questões, mas também pode fazer um caminho contrário. Eu continuo a acreditar.
Este livro é para marcar algum momento?
Eu confesso que não sou uma estratega de carreira. Não sou mesmo.
As coisas surgem?
Sim. O que faço é trabalhar. Sou uma privilegiada porque faço o que gosto e todos os dias agradeço por isso. E gosto muito de projectar coisas, de fazer coisas que para mim são... sei lá, agora quero escrever umas canções, tenho aqui umas ideias e posiciono-me para que isso aconteça. Mas não sou estratega. Nada. Não tenho grandes ambições ao nível profissional. Queria muito continuar a fazer aquilo que faço, por exemplo, os “Príncipes do Nada”, e ter a minha carreira televisiva, mas não tenho assim uma ambição.
A Catarina não é estratega, mas quando toma uma decisão agarra-se a ela.
Sim, sou muito teimosa e gosto muito de construir coisas com as pessoas. Não sou nada individualista, nada. E acho que nada se consegue sozinho. Este livro não sou só eu. São todas as pessoas que estão comigo, sempre. E, portanto, sou teimosa: vamos lá construir uma coisa juntos, sim, mas sempre numa perspectiva de que foram várias energias que permitiram aquela construção.
Como surgiu a função de embaixadora da ONU?
Foi um convite que surgiu de uma investigação de mercado. Um enviado especial das Nações Unidas veio até aqui depois de ter perguntado à Associação para o Planeamento da Família – que faz a ponte, em cada país, para o Fundo das Nações Unidas para a População – e perguntou quem seria a figura pública que teria reunidas as características que pudessem dar uma embaixadora comprometida, alguém que realmente vestisse as causas e as defendesse até mais não. Passada essa entrevista, que foi um dia inteiro, vem uma carta do anterior secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e foi um balde de enorme responsabilidade.
A Catarina diz que a morte é do que mais tem medo, mas foi para países onde a morte é uma constante.
Sim, mas uma coisa compensa a outra. Como acredito que vai tudo correr bem, apesar de sentir que ali a morte é um perigo, vai tudo correr bem, portanto está tudo equilibrado. Vou ser muito franca, e acho que falo também em nome também do Ricardo Freitas, produtor, realizador e autor das fotografias do livro: nós, perante aqueles cenários e perante pessoas que sofrem tanto, que estão tão desesperadamente esquecidas pelo mundo, estamos completamente em segundo plano. Claro que depois, de repente, clicamos a realidade e nos lembramos da família. Não é que eu ponha em segundo lugar a família, ela está sempre em primeiro lugar, mas o meu receio ali nunca passa pelo meu próprio risco, porque estamos a assistir a coisas que... como é possível?
Como conseguiu controlar a emoção?
Por respeito às pessoas. Não iriam perceber. Por imenso respeito à sua dignidade. Se eu começasse a chorar, elas iam perguntar: mas porquê? E eu teria de explicar: é que eu tenho uma casa de banho, tenho água que corrente na torneira, os meus filhos vão à escola, tive um parto assistido, ninguém da minha família morreu ao dar à luz, blá-blá-blá…
A frase “não têm nada mas são felizes” irrita-a, certo?
Pois. Irrita-me. Sei que posso beliscar algumas pessoas, mas francamente...
Mas isso depende do tom que com se diz a frase?
Eu não critico as pessoas. De todo. Quem sou eu?! A minha questão é, como eu vejo e já vi muita coisa, aquilo que irrita é as pessoas poderem pensar, fruto de uma não reflexão e até de uma boa vontade e de um bom coração, que aquilo é suficiente. Porque vêem um sorriso. É também uma espécie de apaziguamento com a própria pessoa, porque assim não sente uma culpa de não contribuir para um mundo melhor.
Deixa-me muito triste porque é ter a vista curta. É não pensar que as pessoas mereciam muito mais do que apenas um sorriso. Com o livro tento que as pessoas percebam isso, que não podemos dizer que “estão felizes e vivem sem nada”. Então, vamos todos viver sem nada. Façamos esse exercício. Continuaremos a sorrir todos sem casa de banho, sem escola, sem tudo o resto?
Uma das coisas que aprendeu é que nós não vamos lá ensinar nada? Temos essa pretensão por virmos de uma sociedade mais “evoluída”…
Não podemos ter nunca essa pretensão. Apesar de sermos de um país desenvolvido, também temos as nossas falhas e depois temos de saber ler o outro – é uma das grandes aprendizagens da vida, a nossa humildade, aprender o outro, como é que ele vive, como é que ele vê a vida. Acho que só devemos intervir mesmo quando existem violações dos direitos humanos. Aí, devemos insurgir-nos, mas tentar ensinar coisas a culturas não pode ser o ponto de partida. Até podemos achar que algumas coisas que funcionam bem para nós e até podem funcionar bem para eles, mas não pode ser esse o primeiro pensamento. Ouvir é o mais importante.
O que diz o seu coração?
O meu coração diz que é elástico.