03 jul, 2020 - 19:58 • Filipe d'Avillez
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O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) emitiu um parecer em que rejeita a utilização de aplicações de telemóveis para fazer o rastreio de cidadãos no âmbito da pandemia de Covid-19.
Num parecer publicado no site do CNECV, que foi aprovado por unanimidade, os seus membros alertam para o facto de não ser possível, nos moldes atuais, garantir a privacidade dos dados dos cidadãos, nem de garantir o princípio da equidade, uma vez que são precisamente os grupos mais vulneráveis que terão menos acesso a equipamentos tecnológicos que permitam a utilização das ditas aplicações.
“As aplicações digitais móveis para o controlo das cadeias de transmissão da Covid-19, tal como são descritas as suas caraterísticas no momento presente, não podem ser consideradas uma estratégia de saúde pública alternativa aos processos convencionais de controlo nacional da pandemia, desde logo porque a sua utilização não é generalizável a toda a população ou à percentagem desta que torne possível assegurar eficácia sanitária, devendo considerar-se o seu uso complementar nas estratégias de controle de transmissão da infeção”, lê-se.
“Generalizar o uso de aplicações digitais móveis como uma estratégia nacional para controlar a transmissão da infeção na comunidade pode associar efeitos perversos, se afastar do planeamento das intervenções sanitárias os grupos sociais onde se reconhecem diversas vulnerabilidades, designadamente os que não são portadores de equipamentos tecnologicamente avançados nem capazes de fazer deles o uso pretendido para fins sanitários”, acrescentam ainda os relatores do CNECV, acrescentando que “as aplicações digitais móveis são interdependentes das caraterísticas dos telemóveis, o que acentua as desigualdades associadas à baixa literacia digital e à condição económica e social dos cidadãos, factos que constituem uma objeção ética fundamental para se recomendar a sua utilização com caráter obrigatório.”
Por esse motivo, os membros do Conselho de Ética avisam que se deve proteger contra qualquer pressão social, especialmente por parte das autoridades, “que condicione os cidadãos para adotar aplicações móveis de rastreio de contactos, responsabilizando-os por uma estratégia global de saúde pública, que seria sempre desproporcionada para esse fim”.
Contudo, o parecer termina dizendo que no caso de adesão voluntária e livre às aplicações, estas podem ser eticamente admissíveis, “mas essa opção reforça a responsabilidade do cidadão detentor do telemóvel para a adoção de um apropriado comportamento, sempre que for notificado de um contacto próximo e durável com alguém infetado”.
O parecer da CNECV está acompanhado de uma declaração de um dos seus membros, Ana Sofia Carvalho, que afirma que votou a favor por concordar no essencial com os argumentos expostos, mas faz questão de dizer que este chumbo pode não ser definitivo e que poderão surgir situações em que se justifica o rastreio por aplicação.
“Qualquer solução a implementar não deve, no entanto, ser considerada alternativa, mas sim complementar às medidas atualmente em vigor. Ou seja, pensar sequer que poderá existir uma segunda vaga que obrigue a medidas idênticas às que assistimos nos últimos meses é inconcebível e, obriga a pensar qualquer solução complementar às já implementadas como um imperativo ético”, escreve, apontando para os desastrosos efeitos económicos do confinamento sentidos até ao momento.
Tendo em conta a impossibilidade de um regresso ao confinamento e o facto de o princípio ético da privacidade não prevalecer sobre a obrigação ética de evitar um piorar do cenário económico, “em certas condições, o desenvolvimento e o posterior uso de uma aplicação para rastrear contactos não só me parece eticamente justificado como 2 eticamente obrigatório”, diz Ana Sofia Carvalho.
Neste cenário, porém, uma aplicação deve obedecer a alguns critérios: “Primeiro deverá demonstrar inequivocamente que é necessária e que não existem alternativas melhores e com menos riscos éticos. Tem, evidentemente que ser suficientemente eficaz, oportuna, popular e precisa; científica e tecnologicamente deverá ser inequivocamente demonstrado que a aplicação funcionará (sem números inadequados de falsos positivos), que é oportuna, que será instalada por um número suficiente de pessoas e, evidentemente, que gera dados e informações precisas.”
“Além disso, terá que obedecer ao princípio da proporcionalidade; ou seja, a gravidade e os potenciais benefícios da aplicação em apreço, terão que justificar os seus impactos negativos. E, por fim, terá que ser temporária; com data explícita e razoável para o seu fim”, conclui a especialista em ética, na declaração que pode ser lida na íntegra, aqui.