14 ago, 2020 - 16:57 • Pedro Mesquita
O filósofo José Gil aponta o dedo aos partidos políticos dos dois lados da barricada pelo "espaço de expressão política de extrema-direita" que foi aberto e "que não se vai fechar".
Em entrevista à Renascença, o ensaísta contribui para o atual debate social sobre racismo, alinhando-se com quem diz que "Portugal é racista", dias depois de ativistas e deputadas portuguesas terem sido alvos de ameaças por grupos nacionalistas.
Sobre a popularidade de André Ventura, começa por apontar para o descontentamento "há muito existente em Portugal", que dantes se refugiava no abstencionismo e que agora encontrou eco no Chega. "Ventura cavalga aquele descontentamento subterrâneo que nós temos há dezenas de anos."
Como se pode entender o fenómeno Chega de André Ventura?
O Chega não cresce por si, o Chega cresce dentro de um meio, um ambiente político e social. Em primeiro lugar, o PS e o António Costa conseguiram integrar a extrema-esquerda dentro do sistema, conseguiu que as margens com uma certa inorganicidade política fossem integradas no sistema. O resultado é que hoje as pessoas que, há muito, não suportam o sistema político nem os políticos, porque são corruptos, porque o sistema é injusto, não têm já em que margem se colocar.
Ao mesmo tempo, como nós sabemos, o PSD e o CDS deixaram de fazer oposição. O resultado é que o alvo do descontentamento há muito existente em Portugal, que se refugiou no abstencionismo, etc, esse alvo tornou-se o sistema inteiro. Está inaugurado em Portugal, abriu-se um espaço de expressão política de extrema-direita, que não se vai fechar.
Veja as relações entre o sistema político e a banca e os escândalos da banca e a corrupção. E depois lembre-se que os partidos políticos atuais não se erguem com crítica e ferocidade e indignação real com o que se está a passar na banca. Porquê? Porque eles são herdeiros disso.
Num país que muitos dizem que não é racista, surpreende-o de repente situações como ameaças a deputados e ativistas antirracismo?
Não, não me surpreende. Podemos discutir se Portugal é ou não racista, eu estou convencido que é. O que é preciso é definir o tipo de racismo latente, fervilhante, português. Não tem expressão igual à que tem noutros países e não se entende porquê, porque o racismo, a xenofobia, a homofobia são focos de irracionalidade que, de repente, são atractores extraordinários, ímans que atraem todo o descontentamento.
Descontentamento com a corrupção, a lentidão da Justiça, as desigualdades sociais...
Com o sistema. Veja as relações entre o sistema político e a banca e os escândalos da banca e a corrupção. E depois lembre-se que os partidos políticos atuais não se erguem com crítica e ferocidade e indignação real com o que se está a passar na banca. Porquê? Porque eles são herdeiros disso. A sua questão fez-me pensar: o que é que falta aos partidos políticos? Pois, falta precisamente isso. É que eles não podem elevar-se contra um sistema a que pertencem.
Como é que isto se vai desenvolver? Que sociedade civil e política é que perspetiva por este caminho dentro de dez anos?
Não lhe sei dizer. Sei que o que se desenha em Portugal é que o clima cada vez maior de tumulto, de insegurança, vai gerar distúrbios sociais. Aquele espaço que eu dizia que se abriu definitivamente para a extrema-direita vai alargar-se. O Ventura cavalga aquele descontentamento subterrâneo que nós temos há dezenas de anos, a saber “eles, os corruptos”, e ele agora vem dizer, à tona, “eles, os corruptos” e os portugueses reconhecem-se nisso. Compreende-se assim que o [Chega de] Ventura esteja quase a ser o terceiro partido da ordem política portuguesa. É incrível, mas é.