16 ago, 2020 - 17:09
Cerca de trezentas pessoas participaram no Porto, durante a tarde deste domingo, numa concentração contra “tentativas de intimidação” a três deputadas e a sete ativistas antifascistas e antirracistas.
Entre os manifestantes concentrados no Porto encontrava-se Luís Lisboa, coordenador do núcleo de Guimarães da Frente Unitária Antifascista (FUA), um dos primeiros ativistas a formalizar queixa-crime pelas ameaças e que disse encontrar-se já sob proteção policial.
“Temos de nos insurgir contra esta vil ameaça. isto não passa de terrorismo”, afirmou aos jornalistas.
Este tipo de ameaças, sublinhou, “só se pode combater com a decência, com a fraternidade, com a solidariedade e com o levantamento popular. Isto não é um ataque a dez pessoas, é um ataque a todo o país. E todo o país tem de combater, mais do que nunca, estas tentativas de retrocesso, de voltar ao passado”.
Durante a concentração, que prosseguia pouco depois das 16h00 e que estava a ser acompanhada por um discreto dispositivo policial, mas sem quaisquer incidentes, ouviram-se palavras de ordem como “fascismo nunca mais”.
Também presente no protesto do Porto, outra ativista da FUA, Andreia Santos, recusou a “cedência ao medo”, face às tentativas de intimidação.
“Medo não é o que nos move. Não o sentimos e não vamos de deixar de ser antifascistas. Se vão recorrer a métodos pidescos, não nos vão intimidar”, garantiu, num discurso pautado por críticas à legalização do partido de extrema-direita Chega, que lhe permitiu eleger um deputado.
Mas recusou que o Chega seja, por si só, culpado disto tudo.
“O Chega não é a causa. O Chega veio normalizar o discurso da extrema-direita”, acrescentou.
Tino de Rãs, do partido RIR, juntou-se igualmente ao protesto, “a pedido da filha”, porque – disse – “é preciso lutar contra aqueles que andam à boleia da democracia”.
Nos últimos dias, três deputadas e sete ativistas foram alvo de ameaças por uma autoproclamada “Nova Ordem de Avis – Resistência Nacional”, que reivindicou também uma ação junto à associação SOS Racismo.
Na quinta-feira, o Ministério Público instaurou um inquérito-crime ao assunto, um dia depois de o dirigente da SOS Racismo Mamadou Ba ter prestado declarações na Polícia Judiciária e ter confirmado a receção, juntamente com mais nove pessoas, de uma mensagem de correio eletrónico a estipular o prazo de 48 horas para abandonar o país.
Ao comentar as ameaças, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, recomendou aos democratas “tolerância zero” e “sensatez” para combater o racismo.
Tal como o Governo, que condenou estas ações como “uma ameaça à própria democracia”, o presidente da Assembleia da República e vários partidos repudiaram as ameaças feitas aos ativistas e à associação.
Manifestação em Lisboa contra crescente à-vontade da extrema-direita
Contra o fascismo, o racismo e pela liberdade e direitos cívicos, centenas de pessoas manifestaram-se hoje em Lisboa num protesto que quem lá estava disse ser necessário pelo crescente à-vontade que a extrema-direita sente para cometer crimes.
Por volta das 15h00, hora marcada para a concentração no Largo Camões, já muitos se juntavam em torno da estátua do poeta onde, num modelo de microfone aberto, quem quis "subir ao palco" para falar a quem ali se dirigiu.
Breves discursos intervalados por palmas da assistência e pelas palavras de ordem mais repetidas – “Não passarão” – foram-se sucedendo entre quem fez questão de marcar presença para condenar o mais recente episódio de racismo em Portugal, em investigação pelo Ministério Público, que pretende apurar os factos relativos ao email intimidatório enviado a três deputadas e representantes de organizações de combate ao fascismo e ao racismo por um grupo conotado com a extrema-direita, a Nova Ordem de Avis -Resistência Nacional, ao qual também se atribui a organização da concentração frente à sede da SOS Racismo.
Rita Osório, da Frente Unitária Antifascista e uma das responsáveis pela organização da concentração de hoje tem o nome entre os 10 que constam da lista, declarou-se surpreendida com a quantidade de pessoas ali presentes, mas esperando que ainda pudessem chegar mais. Menos surpreendida está com o escalar das ações violentas da extrema-direita no país.
“A Frente Unitária Antifascista sempre tentou avisar que a extrema-direita se estava a desenvolver e a ganhar força”, disse apontando o dedo a quem diz ser a cara do crescendo do discurso de ódio, racista e xenófobo em Portugal, dando força a grupos extremistas e legitimando o seu comportamento violento: o deputado André Ventura, do Chega.
Das autoridades públicas e das forças políticas disse que esperava mais e recusa o apelo à calma do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
“Nós não podemos ter calma como o nosso Presidente da República pediu, não podemos, porque nós é que estamos na linha da frente, nós é que estamos a receber essas ameaças. Por isso é impossível termos calma quando temos cada vez mais organizações racistas e fascistas a ganhar palco e espaço”, disse, lembrando que o artigo 46.º da Constituição as proíbe.
A Constituição, e o seu artigo 46.º, que proíbe organizações racistas ou de ideologia fascista, andava hoje na boca de todos e nos cartazes de muitos. Como no de Inês Lopes, que dizia simplesmente “Constituição. Artigo 46.º”, o artigo que ela própria só descobriu depois dos últimos acontecimentos no país em matéria de racismo a terem levado a ler a lei.
Proibir o fascismo na Constituição não chega? “Aparentemente não chega. Só chega um Chega”, ironizou.
Inês Lopes não tem dúvidas no retrato que trata da sociedade portuguesa: “Normalizada com o racismo, portanto racista”.
“Acho que falta empatia e acho que existe uma grande hipocrisia portuguesa, porque temos que reconhecer que existe racismo. Todos nós somos racistas e fomos ensinados subtilmente ou diretamente a tal. Como tal, precisamos de reconhecer primeiro que o somos. Faltam mais manifestações como esta, falta falar sobre isto”, defendeu.
Para a manifestante estar ali, no Largo Camões, em 2020, pelos motivos que estava, é coisa que “não faz sentido em pleno século XXI”. Ou até pode fazer, dependendo da atenção que se preste à História.
“Sabe-se que a História é circular e às vezes é preciso sermos relembrados que certas coisas podem, de facto, acontecer novamente. Por isso é que existem Constituições. É preciso ter ali um lembrete que nos diga que se calhar há o perigo de isto voltar a acontecer. […] O racismo existe, assim como o discurso fascista, claramente. Como tal, temos que estar aqui”, disse.
A História repete-se, sobretudo, por ignorância, defendeu Cláudia Santos, que partilha o sentimento de “absurdo” de sair à rua para defender direitos e liberdades conquistadas. Circulava com um cartaz onde se lia “Já liam mais”, porque é ignorância que vê quando vê a História a repetir-se populismo que alimenta uma dimensão crescente dos discursos de ódio.
“Acho completamente absurdo o despudor das pessoas, o quão confortáveis elas estão para cometer crimes. Acho que as pessoas estão-se a sentir confortáveis e estão-se a sentir legitimadas também por alguns representantes que começam a encontrar”, nomeadamente no parlamento, disse.
A mudança, disse, pode começar na escola: “A educação tem um papel bastante importante. Vamos não esquecer que uma boa parte do nosso programa, em especial de História, ainda descende muito do Estado Novo e sinto que é por isso também que as pessoas se sentem tão à vontade com sentir nacionalismo”.
João Monteiro, dirigente do Livre, foi dos primeiros a pegar no microfone para falar aos manifestantes, aos quais disse que não esperava estar a viver aquilo que se está a viver no país. À Lusa disse que o momento é “inacreditável e inaceitável” e que fazer listas com nomes de pessoas e ameaça-las é “terrorismo interno”, em relação ao qual espera ação da polícia e esperava uma ação diferente dos partidos.
“Acho que todos os partidos democráticos, da esquerda à direita, se devem unir e condenar este tipo de atitudes que são atentatórias dos direitos dos cidadãos”, disse.
Erguido bem alto acima da cabeça da manifestante que o segurava e na direção de quem discursava, um cartaz alertava que “estamos a perder Abril”, com um cravo murcho a reforçar a ideia. Ao microfone sucediam-se intervenções que culminavam quase todas numa ideia chave: a importância de agir e de não ficar em silêncio.
Ao microfone, um jovem brasileiro a viver em Portugal há 14 anos deixou um agradecimento: “Obrigada por estarem aqui hoje, a lutar pelo meu direito de viver aqui não sendo português”.
Imediatamente a seguir, outra jovem brasileira, advertiu os portugueses que ainda se sentem confortáveis com o país onde vivem. Na posição de quem “assistiu de perto à ascensão de Bolsonaro” apontou o dedo ao “silêncio de quem acha que não é nada com eles” e pediu aos presentes para responsabilizarem amigos e familiares por não estarem ali com eles.
“Ainda não é tarde demais para Portugal, mas amanhã pode ser”, disse.
[Notícia atualizada às 19h33]