20 jul, 2020 - 06:30 • Cristina Nascimento
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“Das minhas filhas, só a pequena de 18 meses é que teve consulta de rotina, de resto ninguém teve; marcar vacina também está muito demorado. Mas a grande dificuldade mesmo é conseguir que atendam o telefone”. O relato é feito à Renascença por Carmen Mahnke, utente do Centro de Saúde de Caneças, em Odivelas.
Há relatos vindos de várias zonas do país e nem as Unidades de Saúde Familiar (USF) escapam às queixas.
“Ainda a semana passada a minha filha estava com suspeita de infeção urinária, a Saúde 24 encaminhou para ser vista no dia seguinte. Estive uma tarde inteira a ligar e não atenderam. No dia seguinte fui lá. Dizem que funcionam bem por mail, mas enviei as análises por mail na quinta-feira e, três dias úteis depois, ainda não tive resposta”, descreve Ana Guerra, utente da Unidade de Saúde Familiar da Luz, em Benfica, Lisboa.
O país e o mundo vivem uma altura de crise e os cuidados de saúde primários não são exceção. Em tempo de pandemia de Covid-19, a indicação é evitar deslocações ao centro de saúde e privilegiar a assistência médica não presencial, através do telefone ou correio eletrónico. No entanto, para isso ser possível é preciso que haja meios para conseguir atender todos os utentes.
O presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar, Diogo Urjais, alerta para a falta de meios, que a Covid-19 veio evidenciar.
“Aquilo que a pandemia veio reforçar é que os recursos materiais nas unidades não correspondem às necessidades do aumento da consulta não presencial e até da presencial”, diz o profissional de saúde.
Diogo Urjais destaca a questão dos telefones. “Se a nível nacional a resposta ao atendimento telefónico não era das melhores, não era realmente o forte dos cuidados de saúde primários, com o aumento desta atividade obviamente podemos ter aqui alguma rutura”.
O presidente da associação diz mesmo que não se verificou um colapso do sistema porque foram sendo inventadas soluções, por exemplo, “compra de cartões pré-pagos” ou ligações “do próprio telemóvel”.
Além de telefones, falta também pessoal. “É importante investir em recursos humanos, nomeadamente em secretários clínicos, porque se nós estamos a aumentar a carga horária não presencial, e se os secretários clínicos ou os administrativos técnicos já eram a classe mais em falta nos cuidados de saúde primários, se a carga agora aumentou, a resposta torna-se mais difícil”, diz Diogo Urjais.
Já o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira, chama a atenção que os centros de saúde que já tinham falta de médicos de família são também aqueles que estão agora mais pressionados pela Covid-19.
“Nesta altura começa a haver alguma exaustão, nomeadamente nos centros de saúde onde coexistem as duas situações, isto é, situações de mais doentes com Covid, que é o caso de algumas freguesias dos concelhos limítrofes de Lisboa e onde já havia falta de médicos de família”, argumenta.
Rui Nogueira recorda que os médicos de família estão “a seguir mais de 95% dos doentes ativos de Covid-19”, em casa, com “com telefonemas diários para acompanhar a situação clínica”.
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Há dias, o secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, garantia que o Governo tem em marcha um “plano de grande profundidade” para preparar um outono/inverno em simultâneo com a atividade Covid-19.
O anúncio, no entanto, não sossega o setor dos cuidados de saúde primários.
“Não é a resposta necessária até porque, se for coincidente com o Orçamento Suplementar, verbas para os cuidados de saúde primários há muito poucas”, diz Diogo Urjais.
“Está na altura de acabar com a frase cliché de que os cuidados de saúde primários são o pilar do SNS, quando depois há pouco ou nenhum investimento que seja coerente com esse discurso”, acrescenta, rematando que “os cuidados primários, quer queiramos quer não, ainda são o parente pobre do SNS”, sublinha o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar.
O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira, mostra-se, apesar de tudo, menos pessimista.
“Sossegados não podemos estar porque ainda não conhecemos o plano, nem fomos chamados a opinar sobre esse plano, mas é uma boa indicação o facto de haver este sinal de disponibilidade para contratar mais profissionais”, diz.
Rui Nogueira recorda, em particular, a necessidade de reforçar o número de médicos de família.
“Este 2020 e 2021 vão ser anos com uma pressão maior e, portanto, vai ter que haver uma consciência da necessidade de mais médicos tendo em conta também aquilo que são as aposentações, o grande número de aposentações de colegas nos próximos meses”, argumenta.
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