07 out, 2020 - 21:17 • Lusa
A Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), em comunicado divulgado esta quarta-feira sobre as escavações na Sé de Lisboa, afirma que a conservação dos vestígios arqueológicos não coloca qualquer problema de segurança, contrariando declarações do subdiretor do Património Cultural João Carlos Santos.
O comunicado da AAP foi emitido hoje, depois de uma visita do seu presidente, José Eduardo Arnaud, ao estaleiro de obras, na passada sexta-feira.
"Ao contrário do que havia sido afirmado pelo arquiteto João Carlos Santos [subdiretor do Património Cultural], a conservação 'in situ' das estruturas encontradas não implica qualquer problema de segurança, de acordo com informação prestada no local pelo engenheiro Victor Oliveira, diretor de obra da Ferrovial [empresa responsável pela obra no claustro], [e] pelo engenheiro Joaquim Ferraz, responsável pela Segurança da Pengest, empresa que fiscaliza a obra", lê-se no comunicado
A AAP realça o "conjunto de excecional valor arqueológico, histórico e patrimonial, constituído por pelo menos nove compartimentos em torno de um pátio, que se encontram em muito bom estado, conservando ainda o revestimento estucado original, pelo que deverão ser salvaguardados, conservados e valorizados 'in situ' [no local onde foram encontrados]".
A Associação é categórica: "A eventual desmontagem e remontagem noutro local de parte das estruturas encontradas, também sugerida pelo arquiteto João Carlos Santos, afigura-se completamente inaceitável, por implicar a sua descontextualização, sendo assim contrária às mais elementares boas práticas de conservação e restauro de vestígios arqueológicos".
Os restos do que se acredita ter sido um vestiário(...)
A AAP acusa o responsável de uma "visão restritiva" ao considerar que "os vestígios encontrados podiam ser removidos à face da lei, por não estarem abrangidos pela classificação de todo o conjunto monumental da Sé de Lisboa como Monumento Nacional".
Para a associação, tal conceção "não se afigura de todo aceitável, à luz das convenções internacionais e das boas práticas de conservação do património cultural, pois os monumentos devem ser considerados na sua globalidade, incluindo os edifícios pré-existentes".
A associação acusa a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) de ter "orientado mal" desde o início do projeto, e responsabiliza-a pelos "inevitáveis atrasos da execução e derrapagens orçamentais".
Para a Associação, a DGPC "nunca deveria ter aprovado" o chamado projeto de valorização do claustro da Sé de Lisboa, dado "a complexidade deste, sem a escavação arqueológica integral das áreas a afetar".
Recorda a AAP que "há muito que os historiadores sabiam que a Catedral de Lisboa havia sido construída sobre a antiga mesquita, pelo que era expectável que se encontrassem alguns vestígios da mesma, subjacentes ao claustro".
A AAP considera que a atual questão de manutenção dos vestígios islâmicos não é "um problema técnico ou de segurança, para o qual a engenharia não tenha solução, mas apenas de um problema de vontade política, tanto mais que não será muito difícil obter o necessário reforço financeiro", e apela à procura de apoios pecuniários privados, nomeadamente uma fundação.
"A AAP, na sua qualidade de mais antiga instituição dedicada ao Património Arquitetónico e Arqueológico do país, apela às entidades oficiais responsáveis pela gestão do património cultural e ao Governo da República para que tenham a coragem de suspender de imediato a execução do projeto de instalação do núcleo arqueológico do Claustro da Sé de Lisboa, e de o mandar reformular por completo, de modo a contemplar a salvaguarda, conservação e valorização integral deste conjunto patrimonial".
A associação cita o investigador Hermenegildo Fernandes, do Centro de História da Universidade de Lisboa, segundo o qual a destruição dos vestígios "seria um crime patrimonial impensável".
A descoberta, nas obras de requalificação e restauro do claustro da Sé de Lisboa, de vestígios da antiga mesquita almorávida, do século XII, e a sua exumação (retirada), tem suscitado a crítica de vários setores científicos e do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STArq), assim como pedidos de esclarecimento à ministra da Cultura, Graça Fonseca, por parte dos grupos parlamentares.
O complexo da antiga mesquita ocupava todo o quarteirão da atual Sé, com banhos, escolas e a mesquita dos mortos, entre outras estruturas, segundo uma das investigadores e diretoras científicas do trabalho arqueológico, Alexandra Gaspar.
Entre os vestígios descobertos, que a arqueóloga apontou como "únicos" nos contextos ibérico e marroquino, encontra-se a base do minarete e o compartimento do vestiário.
"A mesquita encontrada só tem paralelo na Argélia", realçou Alexandra Gaspar, durante uma visita de imprensa ao local, que defendeu a manutenção dos vestígios, num parecer técnico que foi contrariado por um despacho hierárquico superior.
No passado fim de semana, os professores universitários da área da arqueologia, entre os quais Jorge de Alarcão, da Universidade de Coimbra, garantiram que os vestígios arqueológicos encontrados na Sé de Lisboa "são inequívocos quanto à excecionalidade científica e patrimonial dos achados".
Para os professores, "é impensável que um projeto de valorização de um monumento nacional, como é a Sé de Lisboa, destrua as suas preexistências".
A AAP afirma que, "logo que teve conhecimento de que as estruturas pertencentes à antiga mesquita, encontradas ao fim de mais de 25 anos de pesquisas (...) estavam em risco de ser destruídas", de imediato iniciou diligências para alertar a tutela e, a 24 de setembro último, enviou uma carta ao diretor-geral do Património Cultural, Bernardo Alabaça, "no sentido de mandar proceder à suspensão imediata dos trabalhos em curso, e de solicitar ao arquiteto responsável pelo projeto uma reformulação urgente do mesmo, de modo a garantir a salvaguarda integral das ruínas da antiga mesquita".
Sobre esta questão, foi convocada a Secção do Património Arquitetónico e Arqueológico (SPAA), do Conselho Nacional de Cultura, para avaliar a situação, e o diretor-geral do Património Cultural, Bernardo Alabaça, disse à Lusa que "fosse qual fosse" o parecer, este seria acatado.
A DGPC anunciou hoje ter pedido um "estudo de formas alternativas de garantir a estabilidade das estruturas a edificar", na Sé de Lisboa, "no sentido de minimizar a afetação dos vestígios arqueológicos" encontrados.