17 out, 2020 - 00:13 • Ana Carrilho
“Os doentes crónicos foram empurrados para a periferia e com a COVID, foram empurrados para fora do SNS – Serviço Nacional de Saúde. É a sensação que vivemos no dia a dia”, diz à Renascença Alexandre Guedes da Silva, presidente da SPEM – Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla.
Com o adiamento de consultas, exames, diagnósticos e tratamentos, “alteraram as nossas rotinas, remeteram o cuidado às pessoas com doenças crónicas para telefonemas e e-mails”. O pior é que, do outro lado – centros de saúde e outros serviços ou hospitais – ninguém atende. “Toda a infra-estrutura burocrática tolhe os movimentos aos doentes”. E Alexandre Guedes da Silva dá um exemplo: “para irmos às consultas, muitos precisam de transporte. Mas para o pedir, temos de ir a uma consulta. É uma pescadinha de rabo na boca que faz com que a vida do doente crónico seja um verdadeiro tormento. E depois, ninguém atende nem é responsabilizado” – desabafa.
A lista de queixas é longa: “perderam-se milhares de atos médicos, milhares de exames, colocam-se em causa tratamentos porque exigem protocolos de segurança que implicam o acompanhamento do doente. Exames regulares, em muitos casos não foram feitos; há medicação que foi parada porque não havia condições de seguir os sintomas e os efeitos secundários. Sem fisioterapia, muita gente perdeu a capacidade de andar, de deglutir, de escrever”.
Ou seja, o estado de saúde de milhares de doentes “não COVID-19” agravou-se e muitos doentes não resistiram, não resistem.
É a estatística apontada a dedo. Entre as vítimas mortais não COVID, a maioria eram doentes crónicos, “que não foram tratados, que descompensaram. Isso é inadmissível” diz o presidente da SPEM, frisando que o governo, a ministra da Saúde e a Direção Geral de Saúde têm esses números todos os dias: os médicos descarregam os códigos das mortes todos os dias. “Estamos a falar de um excesso de mortalidade em relação ao normal”.
Na conferência de imprensa das associações de doentes da Convenção Nacional da Saúde, Tamara Milagre, presidente da EVITA – Associação de Apoio a Portadores de Alterações nos Genes relacionados com o Cancro Hereditário - apresentou mais números preocupantes: os cancros hereditários representam cerca de 10% dos mais frequentes, letais e ainda 10% dos cancros pediátricos.
Em 2018, quatro dos cinco cancros mais frequentes em Portugal atingiram 46% de todos os casos de doentes oncológicos. Desses quatro, 5-10% dos casos são de origem hereditária. Segundo as contas da EVITA, mais de 2700 diagnósticos de doença oncológica foram cancelados.
“Deixaram de ser feitos sete diagnósticos de cancro hereditário por dia. Foram cancelados e não têm data prevista para a realização”, diz Tamara Milagre que alerta para um cenário catastrófico, cada vez com mais doentes e comum diagnóstico cada vez mais tardio”.
Há mais de seis meses que pedimos uma audiência à ministra da Saúde. Mas até agora não chegou qualquer resposta de Marta Temido. Por isso, agora, as associações de doentes da Convenção Nacional da Saúde viram-se para o Presidente da República, a quem apelam a que exerça o seu poder de influência junto do governo, especialmente de António Costa, para que todas as doenças sejam consideradas uma prioridade a combater.
Sem excluir outras iniciativas envolvendo os próprios doentes e cuidadores, em que estes façam sentir o seu descontentamento mais perto das portas da ministra da Saúde, Primeiro Ministro ou Parlamento.