21 out, 2020 - 19:38 • Sérgio Costa
Na véspera da votação sobre o referendo à legalização da eutanásia, marcada para esta sexta-feira no Parlamento, a Renascença falou com Margarida Alvarenga, enfermeira da unidade de cuidados paliativos do Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, sobre o que leva algumas pessoas a pedirem para morrer e o que falta fazer para mitigar o sofrimento extremo que as leva a pedi-lo.
Os enfermeiros identificam-se com a missão de ajudar os outros e certamente é diariamente confrontada com situações extremas. Como é que é lidar com alguém em sofrimento que, mediante esse sofrimento, não tem vontade de continuar a viver?
Realmente, como diz, os enfermeiros lidam todos os dias com pessoas doentes e, numa perspetiva em que os doentes vivenciam um processo de fim de vida, é a última oportunidade que nós temos de fazer a diferença na vida dessas pessoas.
São pessoas que enfrentam problemas decorrentes de doença incurável e a nossa grande solução é prevenir e aliviar o sofrimento, recorrendo de alguma forma à avaliação precoce, com o doente, dos problemas físicos e também psicológicos, sociais e espirituais que causam sofrimento.
Quando estamos a falar de cuidados paliativos, de pessoas com doenças em estado avançado, este sofrimento é um sofrimento global. Portanto é a última oportunidade que nós temos, efetivamente, de ajudar as pessoas a viver.
Já lhe pediram para morrer?
Sim. Trabalho há 27 anos em cuidados paliativos e chegam-me os dedos de uma mão para as pessoas que pediram para morrer. Maioritariamente estas pessoas fazem-no numa situação de sofrimento intenso, em que se sentem abandonadas, às quais muitas vezes foi dito que não havia mais nada a fazer.
Quando as pessoas têm a noção de que não há mais ninguém que as vai ajudar, perante tal sofrimento como uma dor não controlada ou uma falta de ar ou um mal-estar generalizado ou um sofrimento global, as pessoas ficam em desespero e preferem morrer.
Foi possível inverter essa vontade quando foi confrontada com esses casos?
Sim, é possível reverter essa vontade quando as pessoas percebem que os profissionais de saúde, nomeadamente as equipas de cuidados paliativos, que estão treinadas e preparadas para isso, lhes dão a possibilidade de ter um fim de vida tranquilo, controlando os sintomas.
Evidentemente as pessoas acabam por ter novos objetivos, ter esperança, e é possível terem esperança mesmo tendo uma doença num estádio avançado, quanto mais não seja uma esperança em melhores dias sem sofrimento. E há situações assim: situações de doentes que nos pedem para morrer, porque estão desesperados, e quando veem que efetivamente alguém olhou para eles e respeitou a sua dignidade, tendo em conta tudo aquilo que a doença interfere na sua vida e na sua qualidade de vida, de forma a que possamos retomar um bocadinho dessa qualidade de vida, efetivamente as pessoas deixam de pedir para morrer.
Ou seja, a estratégia passa por tentar estabelecer objetivos? Mesmo para quem está numa situação limite, é possível criar objetivos para essas pessoas para recuperarem a vontade de estarem aqui presentes?
Sim, é possível. É possível fazer todo um trabalho, quer com o doente, quer com a família, quer com a equipa – somos todos parceiros neste plano de cuidados – que permita ao doente realizar pequenos objetivos, como ir ao casamento de um filho, como chegar à data do seu aniversário, celebrar as bodas de prata…
Isso já lhe aconteceu, um exemplo de alguém que estabeleceu esses objetivos?
Já aconteceu, sim, e é importante nós percebermos isto: é que, quando nós falamos de dar qualidade de vida a estes doentes, nós temos de ter noção que qualidade de vida para eles é aquilo que eles consideram como tal, não é aquilo a que nós chamamos qualidade de vida, de ter uma casa à beira-mar, são coisas muito mais simples.
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Quando eu tenho um doente que é internado com dor não controlada e aquilo que ele me diz é “enfermeira, o que espero de vocês é que me consigam controlar a dor para eu conseguir chegar a sábado, que é o dia em que o meu filho casa”, efetivamente conseguimos. No caso conseguimos que ele fosse ao casamento, fizemos algumas diligências no sentido de ele até não ir de pijama, e ele dizia uma coisa muito simples: “Enfermeira, o pijama não é importante, aquilo que eu quero é estar na cerimónia, é ir ver o casamento do meu filho”.
Mas muitos dos que estão em situação difícil reclamam para si a liberdade de decidir. Para um enfermeiro que está no terreno, o que é que pesa mais: é essa liberdade individual ou a vontade de garantir qualidade de vida?
Todos nós temos a liberdade de tomar as decisões sobre nós mesmos, mas a tomada de decisão tem de ser uma tomada de decisão com a pessoa consciente, orientada, com nenhum sintoma que interfira na sua decisão. Temos de pensar que uma pessoa que pede para morrer se calhar tem alguma razão para o pedir e tem de ser trabalhada essa razão, para perceber se é passível de ser trabalhada e resolvida.
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Podemos dizer que, em alguns casos, as pessoas que expressam essa vontade fazem-no não pelo sofrimento extremo, mas também por não encontrarem eventualmente uma alternativa, como cuidados paliativos que lhe garantam esses objetivos? Poderá ser uma das razões que leva algumas pessoas a terem esse sentimento extremo?
Sim. Da mesma forma que nós reclamamos, por exemplo, da não-existência de cuidados de saúde primários, neste momento em Portugal 70% da população não tem acesso a cuidados paliativos. E isto é assustador, porque muitos dos doentes morrem sem cuidados dirigidos às suas necessidades. O sofrimento muitas vezes é causado até mesmo por nós, profissionais de saúde, por não avaliarmos as necessidades efetivas do doente e não lhe conseguirmos dar a resposta por falta de equipas preparadas e treinadas para isto.