16 nov, 2020 - 12:26 • Celso Paiva Sol
Depois de a derrota que sofreu há cerca de três anos na Síria e no Iraque, a dispersão dos elementos do autodenominado Estado Islâmico tem reforçado vários outros grupos radicais espalhados pelo mundo, como explica à Renascença João Paulo Ventura, coordenador da Unidade de Combate ao Terrorismo da Polícia Judiciária.
Com o fracasso militar nas províncias sírias de Raca, Idlibe, Alepo e Deir Zor, e com a queda de cidades bastião como Faluja e Mossul, no Iraque, os jihadistas entraram numa fase de sobrevivência e reorganização.
“A partir do momento em que a organização central é forçada a desconstruir-se há uma série de satélites, num conceito de franchising que já tínhamos visto com a Al-Qaeda, que expande a organização para outras latitudes. Muitas vezes aproveitando a existência de organizações anteriores, como o Boko Haram na Nigéria e do Abu Sayyaf nas Filipinas, para além de outras mais recentes a que chamam Estado Islâmico do grande Saara, e o Estado Islâmico da Africa Central”, explica.
"O que se passa nessa zona tem um paralelismo com o que se passou na Síria, numa fase inicial, quando as milícias islamitas ainda nem sequer estavam configuradas na vertente Estado Islâmico, mas aproveitaram o caos instalado. Isso aconteceu também na Líbia. Não é um exclusivo de Moçambique”, contextualiza João Paulo Ventura, acrescentando que neste último país, há um aproveitamento do colapso das estruturas do estado, que no caso de Moçambique tem a ver com um grande distanciamento face à capacidade de intervenção do poder central. “Estes espaços de oportunidade, de menor vigilância, de menor consistência económico-social, e de menor intervenção das autoridades, leva à tentativa de erguer ali um espaço de influência e poder.”
Sem a mesma estrutura hierárquica e operacional, até com alguma dúvida sobre quem será o líder depois da anunciada morte de Abu Bakr al-Baghdadi, com milhares de combatentes detidos em campos do Nordeste da Síria controlados pelos curdos, temia-se um regresso em massa de todos aqueles estrangeiros que entre 2013 e 2016 viajaram para se juntarem à dita guerra santa.
“O tão temido regresso, com todo o potencial de risco que isso representaria do ponto de vista da segurança, porque estamos a falar de indivíduos com treino de guerrilha, do manuseamento de armas e explosivos, ficou muito aquém da expectativa.”
O coordenador na Unidade de Combate ao Terrorismo revela que esse retorno não se verificou, e os combatentes estrangeiros que durante anos estiveram a participar nas milícias do califado, como atores de guerra, estão agora dispersos em diversas localizações.
A mobilidade destas pessoas tornou-se bastante mais incerta e desafiante para as autoridades “transformaram-se em travelling terrorists - terroristas viajantes".
Porque 2020 tem sido um ano atípico a todos os níveis, incluindo a mobilidade, a pandemia também entra nesta monitorização constante que é feita pelos serviços secretos e policias de investigação de todo o mundo.
A Covid-19 nunca eliminou por completo os atentados, em especial na Europa, e já foi aliás usada como argumento e ameaça.
“Numa fase inicial, há uma aproximação à pandemia na ordem da narrativa, da comunicação estratégica da organização, no sentido de dizer que a vinda da pandemia e as baixas que provocou eram um castigo divino, um castigo de Alá. Podem ser fake news, mas estivemos atentos à ideia que circulou de que alguns fiéis infetados podiam andar por aí livremente no sentido de poderem potenciar a difusão do vírus, e aumentarem ainda mais a escalada da infeção”, refere.
As orientações emanadas através da Internet foram sendo atualizadas ao longo dos últimos meses “ainda numa primeira fase, houve apelos aos combatentes para evitarem as viagens para o ocidente, nomeadamente aqueles que ainda estão no que resta do Califado na Síria e Iraque, mas, mais tarde, volta a haver apelos para atacarem o inimigo infiel de todas as formas, por todos os meios, e com todos os instrumentos disponíveis”.
As mudanças notam-se também no tipo de ordens que a cúpula do autodenominado Estado Islâmico costuma difundir para os seus seguidores.
As orientações não têm sido tão concretas e centram-se agora, sobretudo, em França, onde desde abril já se registaram diversas retaliações, não só pelo uso das caricaturas do profeta Maomé, mas também contra as políticas internas e externas de Emmanuel Macron.
“As ordens, ao contrário do que aconteceu naquele período crítico de 2015 e 2016 - com os apelos para que se cometessem atentados contra o inimigo infiel, com todos os meios à disposição - são agora um pouco mais difusas.”
João Paulo Ventura alerta que há nesta altura “um apelo muito claro de uma organização próxima da Al-Qaeda para atacar França, para atacar os franceses onde quer que estejam, e com todos os meios”. A internet e as redes sociais continuam a ser a plataforma privilegiada para fazer circular estes apelos, sublinha.
Este especialista, que recentemente publicou o livro “Da radicalização ideológica ao Terrorismo: Uma digressão”, regista com preocupação alguns sinais de que o extremismo pode estar a chegar a sectores mais moderados do islão.
Na sua opinião, os ataques desde ano em França e na Áustria parecem ter um potencial de radicalização de franjas normalmente mais moderadas ou talvez só ortodoxas, dentro da comunidade islâmica. “Parece-me uma coisa evitável, porque é profana e está relacionada com o símbolo sagrado destas organizações.”
E se a França parece ser o alvo do momento, nenhum outro país pode dizer que está imune a este tipo de ataques.
Portugal, diz este coordenador da Polícia Judiciária, mesmo não tendo risco zero, continua ainda assim a diferenciar-se de parte significativa dos vizinhos europeus.
É o que revela a permanente analise à estrutura da comunidade islâmica nacional, e aos fluxos migratórios que aqui chegam, ou que por aqui passam. “Tem uma comunidade islâmica perfeitamente integrada, inserida e moderada. Corresponde a cerca de 50 mil pessoas, e de resto há uma preocupação permanente por parte dos responsáveis dessa comunidade. As coisas têm fluido sem incidentes”.
Em tempo de pandemia, com parte significativa do mundo em estado de emergência por causa de um vírus, esta é uma ameaça que não desaparece, e que – como se não bastasse – também coloca os sistemas de segurança em alerta permanente.