02 dez, 2020 - 16:50 • Aura Miguel , com redação
O caixão de Eduardo Lourenço tem a forma de Portugal, declarou o cardeal Tolentino Mendonça, nas cerimónias fúnebres do ensaísta, pensador e professor que morreu na terça-feira.
“O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi e será para muitas gerações futuras um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado”, disse o cardeal durante a homilia da missa que decorreu no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa.
Para o bibliotecário e arquivista do Vaticano, depois de Eduardo Lourenço, “todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios”.
Na missa de corpo presente, onde estiveram o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, o cardeal Tolentino Mendonça recordou um episódio em que Eduardo Lourenço chorou.
“Só uma vez o vi chorar. Fiquei completamente desconcertado porque nada, na nossa conversa, me alertara para a iminência daquela sua emoção torrencial. Estávamos a falar de textos bíblicos, uma conversa, uma conversa animada, saltando desta para aquela personagem. E, de repente, ele tropeçou, como o apóstolo Paulo terá tropeçado, na palavra Jesus. E os seus olhos encheram-se de água e a sua voz de silêncio, de lentidão e soluços.”
“Passou muito tempo para que me dissesse, chorando: ‘Não há nada superior a Jesus. Já se imaginou um Deus que diz 'bem-aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que constroem a paz'... não há nada superior a isto’", recorda o cardeal poeta.
D. Tolentino Mendonça falou também de um momento em que, na televisão, Eduardo Lourenço foi questionado sobre “o que pensa de Deus?"
“A resposta dele abriu um alçapão, trouxe aquele ‘arrepio sideral do infinito’ de que falava Pascal. Sabe - respondeu ele calmamente - mais importante do que dizer o que eu penso de Deus, é saber o que Deus pensa de mim”, lembrou.
A propósito desta pergunta de Eduardo Lourenço (o que Deus pensa de mim), também o cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, comentou, no final da missa que presidiu: “Acreditamos que na raia do Céu, onde finalmente chegou, esta pergunta que o manteve, proferida ou sentida, teve e tem absoluta resposta. Ele agora sabe o que Deus pensa dele. E posso adivinhar, com toda a certeza, que pensa muito bem”.
D. Manuel Clemente lembrou que Eduardo Lourenço foi sempre movido por uma “inquietação profunda”.
Entre as várias personalidades que foram prestar a última homenagem ao ensaísta, encontravam-se os escritores Lídia Jorge, Gonçalo M. Tavares, Pedro Mexia e Nuno Júdice, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e o ex-presidente da República Cavaco Silva.
Eduardo Lourenço morreu na terça-feira, aos 97 anos. O funeral realiza-se em São Pedro de Rio Seco, em Almeida, a terra natal do ensaísta e conselheiro de Estado.