27 jan, 2021 - 17:26 • Liliana Carona
Veja também:
Às 15h00 em ponto, ou talvez duas horas antes, quando a ansiedade de Nuno Saraiva o atira para os papéis com anotações de músicas pedidas no último direto a partir do Facebook, começa o desafio que ganhou asas no dia 14 de março de 2020: karaoke pela internet.
Saiu da Serra da Estrela, pela segunda vez, há seis anos, com destino à Suíça e vive no cantão de Lucerna, na localidade de Reiden, com cerca de quatro mil habitantes. É a partir do seu T1 que canta para o mundo, ao gosto de quem vai fazendo like.
“São de todas as partes do mundo, os pedidos de emigrantes na França, Alemanha, EUA”, garante Nuno, que começa a entoar o "Tombe la neige", de Salvatore Adamo. “Estão sempre a pedir esta música, para se meterem comigo, porque eu odeio neve”, sorri, antes de improvisar uma versão sua do tema. E arranca mais um direto, onde a ligação permite estar à conversa com a Renascença.
Nuno Saraiva tem 49 anos e é natural de Seia. Trabalha atualmente na Suíça, na área da logística, para o segundo maior transportador daquele país, a carregar e descarregar camiões. Já teve trabalhos mais duros, mas não teve outra saída há seis anos. “Não ganhava para comer em Portugal. Quando começou a crise, eu era técnico de vendas de uma empresa, pagava portagens, combustível, alimentação e as comissões é que davam alguma coisa, mas tive de abandonar o barco e tive uma mudança radical", diz.
"Era vendedor, com uma pastinha, de um lado para o outro, mas cheguei aqui e arranjei trabalho na agricultura durante sete meses, sempre de rastos no chão, mas temos de lutar para ter as nossas contas pagas, para andar com a cara limpa”, diz, desabafando o lado lunar da emigração. “Perde-se muito com a emigração. Começa-se a perder a ligação com os amigos, antigamente sabia o que faziam e agora foge o tema de conversa. E a nível familiar, muito mais”, lamenta, acrescentando que “a internet é que o ajuda”.
Os dias de Nuno Saraiva na Suíça são muito diferentes dos que outrora viveu na região beirã. Mesmo antes da pandemia, o custo de vida elevado na Suíça leva os portugueses a fugirem de cafés e bares “a não ser uma vez por outra”, um cenário que a pandemia gravou.
“Meto-me aqui em casa, não se sai para lado nenhum. Faço compras durante a semana, porque ao sábado é complicado. Aqui também não está muito bom", descreve. "Temos de nos precaver, não leio as notícias porque não sei alemão, mas também fechou tudo como aí. Roupas, por exemplo, não se compra em lado nenhum, não há restaurantes abertos, a situação está muito parecida com a portuguesa”, observa, salientando algumas exceções que lhe causam incredulidade.
“Aqui foi o caso das estâncias de ski, com milhares de pessoas e queixam-se que os casos não diminuem”, conta, referindo que Portugal voltou a entrar na lista negra. “Se for a Portugal, quando regressar tenho de estar de quarentena. Portugal esteve na lista negra e deixou de estar quase em cima do Natal. Houve algumas famílias que foram quase à última da hora”, relembra o emigrante gouveense.
Nuno Saraiva estranha ainda alguns procedimentos, nomeadamente, nos aeroportos. “Covid, Covid, distanciamento, mas depois no avião só não te sentam de cima de outra pessoa, porque não podem”, reclama, lembra que a Suíça vai começar a impor a partir de fevereiro a quarentena obrigatória de dez dias aos viajantes de Portugal. O desrespeito por esta medida pode implicar o pagamento de multa até 10 mil francos.
Da última vez que Nuno esteve em terreno lusitano não guarda boas memórias. “Estive aí em novembro, já não estava isso muito bom. Não fui a casa de nenhum amigo. É triste a gente estar tanto tempo fora do país e depois não poder visitar as pessoas amigas. Fui ver os meus tios, e nem entrei em casa, vi-os à varanda. É um bocado triste”, sublinha Nuno Saraiva, que há dois anos, após o falecimento de dois familiares, deixou de festejar o Natal.
E para quando o regresso a Portugal? “Ainda não marquei as férias para este ano, nem tenho vontade. Marcá-las e ter de passar sozinho, como já aconteceu no ano passado…”, diz, hesitante.
“Ser emigrante é…", respira fundo, “complicado”. “No nosso país, dá-te uma dor e falas com um médico e aqui para te explicares, estás sujeito a não encontrar um médico português. É preciso coragem, nem toda a gente consegue adaptar-se. A minha filha veio para aqui e não se adaptou, somos carne para canhão. Viemos para trabalhar e pouco mais, não podes fazer a vida de Portugal”, exemplificando que “uma cerveja custa cinco francos”.
“Se tiveres cuidado e souberes poupar, não fores aos cafés e jantar fora”, admite o emigrante sobre as contas da vida. “Pago por um apartamento com um quarto, 980 francos de renda, o seguro de saúde obrigatório, 400 francos por mês. Pago mais de 700 francos pelo seguro do carro e não é contra todos os riscos. O ordenado ronda os quatro mil francos, mas tem de se gerir muito bem”, conclui.
Com a pandemia, fecharam portas os Centros Portugueses, que congregavam os imigrantes lusos em torno de uma cultura comum, com gastronomia e produtos portugueses à venda. “Neste momento não há nenhum Centro Português aberto. Gostava de ir ao Centro Português, era a rotina, ir às compras, comer um pastel de nata, e isso deixou de existir, porque estão todos fechados”, afirma, com semblante carregado.
O que agarra Nuno ao solo helvético é o trabalho. “Vimos para aqui com o intuito de trabalhar, melhorar a vida e temos de abdicar de muita coisa”, revela a partir do prédio, onde vivem mais quatro portugueses. “Nesta situação atual, não vou para casa de ninguém. Convidaram-me para passar o Natal e passei sozinho. Eu tenho idosos que se me cruzar com eles, parece que viram um bicho. As pessoas desviam-se umas das outras”, descreve.
O emigrante gouveense vai desfiando uma série de nomes de amigos que o apoiaram e com quem convivia nos saudosos encontros dos emigrantes portugueses na Suíça e que também foram interrompidos por causa da Covid-19. “Fui há dois anos pela primeira vez a um desses convívios que decorria em Interlaken. Não fazia ideia daquilo, era tão agradável com jogos de futebol, karaokes, era um dia em que esquecíamos tudo. E agora é triste que, com esta história da pandemia, não se realizou, nem vai realizar”, refere, destacando que o encontro chegava a reunir entre 200 a 300 pessoas.
“Um curioso, mas nunca cantor”, assim se define o próprio Nuno Saraiva, relativamente ao passatempo que o ocupa aos domingos. As sessões de karaoke online, diminuem as fronteiras terrestres e, em segundos, está ao pé da família e dos amigos para lhes encher o coração com música, ao seu gosto (mas sobretudo música das décadas de 60, 70 e 80). Gosta de cantar e já há 10 anos que foi perdendo a vergonha de subir ao palco nos espetáculos de karaoke, ao vivo e a cores e às vezes perante centenas de pessoas. Mas os tempos mudaram em 2020. A pandemia e um amigo fizeram-no pensar noutra estratégia, que começou a ser posta em prática no dia 14 de março.
Do outro lado do ecrã, os espectadores contribuem para as 1.400 visualizações em cada direto. “O feedback das pessoas dá-me força para continuar. Foi para passar o tempo que comecei isto, quando já estava cheio de casa e de sofá", conta, admitindo que, apesar da falta do público de forma presencial, o mais importante é cantar.
“Eu estou a cantar para as quatro paredes, tenho um telemóvel a filmar e outro velho onde vou vendo as mensagens. É extremamente agradável, é o meu dopping para a semana, o aliviar do stress. E depois de ir para o ar, ainda vou ver os erros que cometi”, desvenda sobre o seu hobby, que atrai fãs, mas, uma vez que decorre nas redes sociais está sempre à mercê de todas as opiniões.
“Houve uma que um dia me disse: vai dar banho ao cão e aprende a cantar e eu respondi: boa tarde também para si. Hoje é minha amiga no Facebook e pediu-me desculpa. Estou aqui sozinho, mas tão bem acompanhado. É uma maneira de estar entretido. Cada vez gosto mais disto. Só não posso cantar como num palco, pelo risco de poder ter uma ação de despejo”, graceja, garantindo que os vizinhos suíços, não se incomodam com o ruído a partir das 15h00 da tarde, ao domingo.
O que é que você vai fazer domingo à tarde? canta Nelson Ned, ou o emigrante Nuno Saraiva.