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Entrevista

“Há uma grande falta de estratégia” para os cuidados paliativos

03 fev, 2021 - 06:59 • Eunice Lourenço

A pandemia trouxe maior consciência das necessidades, diz a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Mas a consequência foi o encerramento de serviços e o desmembramento de equipas porque, acusa Catarina Pazes em entrevista à Renascença, não há estratégia.

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Catarina Pazes, presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, trabalha com doentes em fim de vida há vários anos. É enfermeira especializada em cuidados paliativos e trabalha numa equipa que presta assistência em dez concelhos do distrito de Beja. Com toda a sua experiência, lamenta a falta de estratégia para esta área e para a reposta destes profissionais à pandemia.

A comissão nacional para os cuidados paliativos terminou funções no ano passado e não foi substituída, não há um plano estratégico e sem estratégia, não há leis, decretos ou recomendações que funcionem, diz Catarina Pazes, em entrevista à Renascença no dia em que o Parlamento debate cinco projetos de resolução para o reforço dos cuidados paliativos.

Esta quarta-feira vão ser discutidos no Parlamento cinco projetos de resolução para reforço dos cuidados paliativos. que reforço é que de facto é preciso nos cuidados paliativos?

Este é um assunto que diz respeito a todos e precisamos todos de estar muito mais despertos e muito mais conscientes para as necessidades. O que é necessário e urgente no reforço dos cudados paliativos é que aquilo que já existe - e aquilo que já existe de legislação - tenha realmente consequências concretas na vida das pessoas que vivem a sua doença e também nas famílias que as acompanham e que sofrem com a sua situação.

Todo o reforço e toda a preocupação em torno dos cuidados paliativos é bem-vindo, é necessário e é ótimo que o Parlamento pare para pensar como é que o Serviço Nacional de Saúde e o Sistema Nacional de Saúde podem melhorar os cuidados. Isso é necessário. Mas estas recomendações e tudo o que possa sair do Parlamento só será bastante importante se, de facto, se concretizar.

Termos cuidados paliativos de qualidade e acessíveis não é algo que se faça apenas com um decreto ou com nomeação de equipas, precisamos de profissionais competentes na área de cuidados paliativos, altamente especializados, a trabalhar no terreno e precisamos que esses profissionais tenham condições para desempenhar as suas funções de forma a que possam chegar às pessoa que precisam desses cuidados. Mas, para além disso, os cuidados de saúde adequados às pessoas que estão em situação paliativa não dependem só de termos cuidados paliativos reforçados, dependem de uma estratégia toda ela pensada que inclui a formação de todos nós, enquanto profissionais de saúde, porque não há nenhum serviço dos cuidados de saúde que não tenha doentes a precisar de uma abordagem paliativa. Para que esses doentes tenham aquilo que precisam, é necessário que todos tenhamos acesso a formação e conhecimentos que nos permitam cuidar melhor destas pessoas.

Até que ponto é preciso mais sensibilização de todos os profissionais de saúde e não só das equipas especificas de cuidados paliativos?

Essa é mesmo uma questão-chave de tudo isto. Tanto os profissionais de saúde no seu todo como a sociedade em geral precisam de saber mais para exigir melhor. Precisamos que todos os profissionais tenham conhecimento e competência para tratar e para identificar situações complexas, para pedir ajuda dos profissionais especialistas para que isto seja, efetivamente, um serviço e um cuidado acessível a todos os que precisam. Se não tivermos essa sensibilização de todos os profissionais, ter equipas não chega. Precisamos de equipas especializadas, equipas que atendam aqueles doentes numa situação mais complexa, que façam o atendimento e assessoria de outras equipas. No entanto, se essas equipas não tiverem essa sensibilização o trabalho cai por terra e, portanto, temos doentes muitas vezes tratados de uma forma desadequada.

Os doentes têm todos acesso a cuidados de saúde, a questão é que cuidados é que estamos a garantir. Não quer dizer que precisamos de gastar mais dinheiro com estes doentes. Os cuidados de saúde desadequados aos doentes também são caros. Os cuidados de saúde muitas vezes são desproporcionados. E o que é isto de cuidados desproporcionados? Já temos legislação que fala disto, temos uma lei de bases de cuidados paliativos e uma lei de cuidados ao doente em fim de vida que têm claro o conceito de obstinação diagnóstica e terapêutica e que também definem má prática clínica, inclusive punível. Portanto, se é má prática clinica não deve ser recorrente e normalizado no dia-a-dia, mas o que é certo é que temos muitas vezes doentes com acesso a cuidados de saúde desporporciomados que trazem um acréscimo de sofrimento porque se centram, exclusivamente, na luta contra a morte numa situação em que essa luta, infelizmente, é inglória, sem trazer beneficio nenhum par ao doente e para a família. É a isso que se chama cuidados desproporcionados. Não estamos só a falar de investimento em termos financeiros, estamos a falar num investimento sério em termos de estratégica.

Isto diz respeito a todos nós. Um doente com necessidades paliativas posso ser eu, o meu pai, a minha mãe, o meu tio, o meu irmão, o meu filho ... a qualquer momento podemos ter uma situação em que precisamos de cuidados paliativos.

Associa-se muito os cuidados paliativos a situações sem esperança. Mas não é só para essas situações que existem cuidados paliativos, pois não?

Não. Os cuidados paliativos são centrados nas necessidades dos doentes, nas necessidades do ponto de vista de alívio de sofrimento, sendo que esse sofrimento pode ser físico, mas nunca é só físico, pode ser físico, psicológicos, emocional, um sofrimento global que decorre de uma situação de doença que pode ser grave e/ou incurável. Ou seja, não quer dizer que o doente não se cure ou que esteja no fim da vida; quer dizer que o doente tem necessidade de uma abordagem centrada na sua qualidade de vida e no seu conforto e os especialistas para isso são os especialistas em cuidados paliativos.

Todos nós, enquanto sistema, temos de estar preparados para os poder ajudar em cada momento. Não estamos a falar só de pessoas mais velhas ou só de pessoas adultas, estamos a falar de crianças. Infelizmente, os cuidados paliativos pediátricos em Portugal precisam de uma estratégia urgente. Claro que o número de doentes pediátricos a precisar de cuidados paliativos, obviamente, é menor do que o número de adultos, mas são crianças que precisam de cuidados altamente especializados, que precisam de planeamento, de antecipação de decisões éticas, que permitam que a criança ou o jovem tenha um acompanhamento adequado, sem obstinação terapêutica, mas com uma abordagem muto especifica e isso não está a garantido.

Mais uma vez, estamos a falar de custos que não estão a ser direcionados para o melhor e para aquilo que a ciência nos aponta como adequado para o doente. Precisamos muito que a ciência nos venha ajudar a tomar decisões e, seguramente, com mais cuidados paliativos no Serviço Nacional de Saúde vamos fazer muito melhor pelas pessoas. É uma urgência nacional e a pandemia só veio clarificar melhor o quanto isto é urgente.

Que feitos está a pandemia a ter nos cuidados paliativos?

A pandemia, penso, trouxe-nos maior consciência das necessidades, infelizmente não há consequência nas medidas. Ou seja, quando esperávamos que estes serviços e estes especialistas estivessem disponíveis para assessorar e pensar numa estratégia de planeamento de cuidados que são necessários quando temos tantas pessoas já com situação de fragilidade prévia, que podem ser infetadas com Covid e que precisam de um planeamento atempados, quando temos profissionais a lidar com morte todos os dias e com situações de fim de vida para as quais não estão preparados para lidar todos os dias, quando temos isto tudo esperaríamos que os cuidados paliativos fossem chamados a planear e a estar na linha da frente da estratégia de resposta à pandemia e o que aconteceu foi, precisamente, o contrário; não só não fomos chamados para participar neste planeamento, como até houve colegas mobilizados para outras equipas, houve serviços de cuidados paliativos que fecharam, houve um desmembramento do pouco que existia em alguns pontos do país, o que é absolutamente incompreensível e lamentável.

Como é que isso se explica?

Explica-se porque há falta de estratégia. Há uma grande falta de estratégia. A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos é uma associação de profissionais que se preocupa com a causa e está disponível para pensar sobre isto, mas efetivamente no Governo, no Ministério da Saúde tem de haver alguém que tome conta e que olhe para este problema. O nosso Ministério da Saúde deixou de ter, no final do ano passado, a Comissão Nacional de Cuidados Paliativos. Cessou funções e continuamos até hoje sem uma comissão nomeada, o que é também completamente incompreensível e algo irresponsável, porque se não temos ninguém que possa pensar sobre este tema de uma forma séria e estratégica. Podemos ter todos os decretos que quisermos, mas não vão ter consequência nenhuma.

A Comissão cessou funções, mas não foi substituída, nem prolongou funções?

Exato. Continuamos à espera dessa nomeação e a Associação está ansiosa para que isso aconteça porque termos, a nível do Governo, uma estrutura dedicada aos cuidados paliativos faz com que haja um pensamento sobre isto e uma estratégia onde todos, como profissionais, podemos colaborar. Apesar de sermos poucos e de termos poucos recursos, obviamente podemos fazer melhor se tivermos uma estratégia que não temos.

Pelo que tem dito, posso concluir que o que precisam não é tanto de meios materiais, mas de sensibilização e de profissionais qualificados?

Sim, precisamos de profissionais altamente qualificados, reconhecidos. Cuidados paliativos é uma área altamente especializada e tem de ser entendida assim. Não é uma coisa menor, nem para pessoas com menos importância, nem são cuidados com menos importância. Não podemos só nomear equipas e dizer que existem, as equipas têm de ter condições para existir porque senão não garantimos qualidade e ainda é pior, porque criamos uma expetativa que depois é defraudada. Precisamos de profissionais competentes para trabalhar na área e de lhes dar condições para fazerem aquilo que sabem fazer.

E que condições são essas?

São horas dedicadas para cuidados paliativos, é não trabalhar em três sítios ao mesmo tempo, é terem como área principal esta área e participar ativamente no planeamento dos cuidados em cada sítio onde estão, quer a nível de assessoria a outros profissionais, quer na prestação direta de cuidados às pessoas que precisam destas equipas.

Na semana passada, o Parlamento aprovou a lei que legaliza a eutanásia. Que efeitos é que esta aprovação pode vir a ter nos cuidados paliativos? Por vezes, eutanásia e cuidados paliativos são colocados quase como alternativas…

O pior serviço que podemos prestar ao país é colocarmos os cuidados paliativos como uma opção. Os cuidados paliativos são uma área espacializada de cuidados de que podemos precisar em algum momento da vida. Como precisamos da obstetrícia quando há gravidez, como precisamos da ginecologia, por aí fora. Não é uma opção, não é uma coisa que a pessoa decide se quer ou não, como se fosse uma especialidade "à parte".

A eutanásia é uma questão para ser abordada e refletida e pensada como uma questão única. Não temos de pôr nunca uma dicotomia porque isso é errado, é perigoso e a discussão colocada dessa forma tem feito muito mal a esta reflexão. Temos de tirar, de uma vez por todas, os cuidados paliativos da equação da decisão sobre a eutanásia e do pensamento sobre a eutanásia.

Relativamente às consequências - e ressalvo que estas são a preocupações de alguém que trabalha com doentes em fim de vida há muitos anos, não estamos a falar de uma coisa que não sei o que é. Trabalho com pessoas em fim de vida há muitos anos - o que me preocupa em relação à eutanásia é que compromisso assumimos enquanto país relativamente às pessoas que estão em fim de vida e às famílias dessas pessoas? Que condições damos a estas pessoas, em termos sociais e de cuidados de saúde e de apoio ao cuidador, para viverem dignamente e com o alívio sintomático que merecem. Infelizmente, temos muitas, muitas fragilidades a estes níveis.

A questão para quem está realmente preocupado com a vulnerabilidade, com a fragilidade das pessoas, é o que é que estamos a oferecer? Estamos a dizer "ou sofres muito ou podes, simplesmente, optar pela morte" e isso é um perigo. E, depois, a tal rampa deslizante que não é uma coisa da nossa cabeça, é algo real que podemos comprovar olhando para os países onde a eutanásia está legalizada e que mostram que não temos forma nenhuma de proteger quem é mais vulnerável.

E até que ponto vem ou não fragilizar a relação de confiança entre doente e profissional de saúde que é sempre necessária e ainda pode ser mais nos cuidados paliativos?

Gostava de esclarecer uma coisa: doentes acompanhadas em cuidados paliativos não são o "público alvo" desta lei, porque são pessoas que estão mais protegidas, porque têm acesso a cuidados dedicados à sua pessoa do ponto de vista holístico. O que nos preocupa são todas as pessoas que não têm acesso a isso. Até que ponto é que a pessoa que está frágil, porque está doente, que está a perder capacidades, não vê afetada a resposta de saúde havendo a possibilidade da eutanásia. Até que ponto esta pessoa não é levada para essa solução.

Quanto à relação de confiança, acho impossível não afetar porque é impossível não pensar se isto não está a passar pela cabeça dos envolvidos. A abordagem das questões de fim de vida implica formação e competência.

A maior parte de nós (profissionais de saúde) não teve formação sobre cuidados paliativos na sua formação base, para pensar sobre isto é preciso estudar o assunto, não é por sermos profissionais de saúde que sabemos alguma coisa sobre cuidados paliativos, porque não sabemos, e isso é um dos problemas. Preocupa-me que profissionais de saúde que não se dedicam a esta área, que não tenham essas competências, tenham uma atitude de, por um lado, tomarem decisões num lógica de 'não posso parar porque não posso deixar a pessoa morrer' e isso provoca o tal sofrimento desnecessário e, ao mesmo tempo, serem os mesmo profissionais que dizem 'a eutanásia devia ser legalizada porque estas pessoas deviam ter a opção de parar' como se se desresponsabilizassem dessa decisão. É algo que nos merece muita atenção.

Enquanto profissionais temos muita responsabilidade, enquanto políticos que optaram por tomar a decisão no Parlamento a responsabilidade é enorme, é enorme. Estamos a decidir para o país, uma medida para uma sociedade inteira, não estamos a decidir para a vontade de cada um. Termos a eutanásia legalizada no país não vai interferir apenas com "a minha autonomia", não vai só mexer "comigo individualmente". Vai mexer com a sociedade toda. É como se pudéssemos escolher não sofrer.

Claro que também não queremos que as pessoas sofram, por isso escolhemos especializarmo-nos em cuidados paliativos, para ajudar a aliviar o sofrimento, mas é quase desumano pensar que podemos escolher não sofrer, porque é impossível passar pela vida sem sofrimento, seja pelas doenças, seja por outros motivos.

Termos uma sociedade em que passa a ser possível pedir a morte é quase como se deixássemos de ser responsáveis uns pelos outros. Isso é muito grave e merece-nos muita atenção na forma como fazemos passar a mensagem, que não é fácil. É muito mais fácil falar em autonomia e em liberdade do que falar em responsabilização de uns pelos outros e é muito importante que todos nós que nos preocupamos com isto, que temos conhecimento sobre a área, que percebemos o que falta, tenhamos e assumamos a responsabilidade de passar bem a mensagem para que todos, como sociedade, possamos estar bem informados para podermos exigir melhor aquilo a que temos direito.

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