10 fev, 2021 - 19:07 • Hugo Monteiro , Filipe d'Avillez
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A diminuição de idas às urgências, consultas e de exames de rotina constitui uma verdadeira “pandemia paralela” à da Covid-19.
O número de episódios de urgência continua muito abaixo dos níveis atingidos antes da pandemia, no entanto, continuam a ser visíveis algumas imagens de caos nos serviços de atendimento urgente nas unidades de saúde.
Segundo o portal do Serviço Nacional de Saúde, na Internet, o número de episódios de urgência desceu de forma abrupta no início da pandemia, em março e abril de 2020, mas nunca mais recuperou e ainda hoje se mantém muito abaixo do que acontecia antes da Covid-19.
Na passada terça-feira, 9 de fevereiro, houve pouco mais de 8,400 idas à urgência enquanto que no mesmo dia de 2020, antes da pandemia, pelo menos 15.200 utentes recorreram a uma urgência de um hospital.
Os dados mostram ainda que em dezembro de 2020 houve menos urgências do que em abril do mesmo ano, ou seja, há menos doentes a recorrer ao hospital atualmente do que no primeiro pico da pandemia.
O fenómeno tem diversas explicações. Por um lado, o receio de recorrer aos serviços de saúde num quadro de pandemia, mas por outro, a diminuição de incidência de certas doenças devido aos confinamentos e às regras de distanciamento social.
É o caso da gripe, explica José Artur Paiva, o diretor de Medicina Intensiva do Hospital de São João. “Este ano praticamente não tivemos gripe, tivemos uma incidência de gripe muito baixa, pelas próprias medidas que aplicámos para a Covid-19. E diminuindo a circulação das pessoas, o trauma e o trauma grave reduz-se, os acidentes pessoais e de viação também diminuem, portanto há razões de menor recurso à urgência que decorrem das próprias medidas de confinamento e distanciamento social, mas há certamente um determinante desse menor recurso que decorre de alguma inibição das pessoas, alguma intranquilidade das pessoas no acesso aos cuidados de saúde.”
O médico explica que as imagens de caos nas urgências devem-se às dificuldades provocadas pelo aumento significativo dos internamentos. “Uma coisa é o sistema de urgência e a forma como a urgência responde às situações, e outra coisa é o internamento hospitalar, e isso tem de ser separado.”
“Creio que o panorama é bastante heterogéneo no país, mas estamos a ver algumas regiões em que há dificuldade de internamento de pessoas, nomeadamente em áreas mais diferenciadas e tecnológicas como a medicina intensiva e é por isso que se estão a pôr em campo mecanismos de resolução desse problema, nomeadamente através das transferências inter-regionais”, explica.
Os dados também revelam que os cidadãos não estão simplesmente a trocar os públicos pelos privados. A queda no número de episódios de urgência é transversal às unidades de saúde públicas e privadas. Nos hospitais do Grupo Lusíadas Saúde, por exemplo, em 2020 houve menos 40% de recurso às urgências, como explica Eduarda Reis, presidente do Conselho Médico.
"Em relação aos períodos homólogos de 2019, em 2020 temos de facto uma redução da vinda às urgências, da afluência às nossas urgências no geral, de 39%. Isto prende-se muito com o facto de as pessoas terem medo de virem às urgências. Da afluência que temos uma grande parte é de patologia respiratória e muito menor na restante patologia. Temos urgência geral de adultos, temos urgência pediátrica e temos urgência de ginecologia-obstetrícia, em todas houve diminuição, ainda que a da pediatria de facto ainda foi mais evidente, com uma diminuição de cerca de 50%”, garante.
Esta menor procura dos serviços de saúde faz que com cada vez mais as doenças começam a ser diagnosticadas demasiado tarde para conseguir um tratamento, lamenta Eduarda Reis.
“Neste momento o que nos preocupa é que muitas das pessoas que não estão a recorrer à urgência seria com motivos justificados, o que nos traz a preocupação de uma pandemia paralela à da Covid-19, que é a das doenças diagnosticadas tardiamente, nomeadamente as doenças tempo-dependentes, como é a doença do enfarte agudo do miocárdio ou o acidente vascular cerebral, a outra é a doença oncológica, que sabemos que faz com que estas pessoas nos vão aparecer mais à frente, como já estão a aparecer, aliás, em estadios da doença oncológica mais avançados e que teriam sido evitáveis se tivessem recorrido ao serviço de saúde numa fase mais precoce.”
A presidente do Conselho Médico do Grupo Lusíadas Saúde diz que a diminuição da procura verifica-se também nos exames de diagnóstico. “Nós prestamos serviço para o SNS, por exemplo, com exames complementares de diagnóstico e neste momento temos um terço dos exames pedidos vindos via ARS em relação ao período anterior à pandemia. As pessoas não estão a ir ao médico, não estão a ser pedidos exames complementares.”
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Mais preocupante do que estes dados é o facto de, segundo o presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, haver consequências que já não são recuperáveis.
“Temos a consciência de que muito do nós poderíamos ter feito já não é recuperável. Não é recuperável e tem efeitos que não são alteráveis sobre a saúde individual de milhares de portugueses.”
“É preciso planear uma resposta enquanto estamos nesta fase. Evidentemente as pessoas neste momento têm receio de sair de casa, nós mandamos estar confinados, evidentemente as pessoas não vão fazer o exame que não é urgente. Porque grande parte destes exames são de rotina que as pessoas geralmente têm consciência de que podem esperar meses. Neste momento temos é de planear o pós-terceira vaga, envolvendo todos os atores para essa resposta”, diz.
Para alterar a situação, Alexandre Lourenço apela a um esforço de comunicação, para passar a mensagem de que as urgências não podem ser adiadas. Os serviços de saúde são seguros e que não pode haver qualquer receio em recorrer a eles. Um esforço que já vai tarde.
“Daí a campanha de comunicação que devia ter existido sempre. Alertar para as pessoas não adiarem a ida ao médico, às urgências, devia ter sido feita, de forma estratificada, para públicos-alvo. Não podemos ter comunicação ou achar que fazer conferências de imprensa vai atingir toda a nossa população. Os adolescentes não vêem televisão, não têm atenção ao que a Dr.ª Graça Freitas diz, ou a Dr.ª Marta Temido. Muitos jovens adultos têm de ter comunicações próprias. Nós sabemos isso e em comunicação de saúde temos de estratificar a mensagem”, reforça o médico.
Portugal atravessa neste momento a terceira vaga da pandemia de Covid-19, embora haja sinais de que o pico tenha sido atingido e neste momento, graças às medidas de confinamento em prática, o número de novos casos e de mortes está a descer.