08 mar, 2021 - 16:57 • João Carlos Malta
O presidente da Associação Nacional de Fibrose Quística, Paulo Sousa Martins, diz que, o caso desesperado de Constança Braddell, é apenas um entre vários doentes na mesma situação. E acrescenta que há muitos a quem os medicamentos não chegam em tempo útil, perdendo assim qualidade de vida e em outras situações anos de vida.
E não querendo falar do caso em concreto de atirar de responsabilidades entre o Hospital Santa Maria, em Lisboa, e o Infarmed, Sousa Martins lamenta: “É um exemplo claro da burocracia para que o medicamento chegue aos doentes”.
Constança Braddell tem 24 anos e uma doença rara: fibrose quística. Através de uma publicação desesperada numa rede social, feita na passada sexta-feira, começa por pedir: “Não quero morrer, quero viver”.
A jovem afirma que luta para que lhe seja dado pelo Infarmed e pelo Ministério da Saúde a possibilidade de ter acesso a um novo medicamento − que ainda não é comercializado em Portugal −, que no caso dela lhe pode dar boas possibilidades de ter mais anos de vida com qualidade. Mas até agora não teve nenhuma resposta que lhe dê alento e esperança. “Todas as noites vou dormir aterrorizada de não acordar na manhã seguinte – e tudo porque o Infarmed escolheu virar-me as costas”.
Os atrasos na chegada deste tipo de medicamentos, de que o Kaftrio é o último exemplo, gera situações em que o fármaco já não chega em tempo útil ao doente de fibrose quística. “Na verdade, isso acontece. Os critérios de acesso são muito específicos, muito filtrados, e os doentes já estão em fase muito agravada da doença quando os recebem. Muitas vezes, não são eficazes e estão só a adiar a fase seguinte que é o transplante”, esclarece o presidente da ANFQ.
Por isso, o mesmo explica que a Autorização de Utilização Excecional (AUE), mecanismo usado para a requisição médica de fármacos ainda não comercializados em Portugal e sugerido no caso de Constança pelo Infarmed “é um remediar, não é a solução”.
Segundo Paulo Sousa Martins, sem o acesso a este medicamento “há uma degradação progressiva do sistema respiratório”. Os doentes vão perdendo a capacidade de respirar, e têm imensos internamentos ao longo dos anos. “E o desenrolar deste processo é um transplante bipulmonar que acontece entre o início da idade adulta até aos 30 anos”, identifica.
Tal podia ser evitado, segundo a ANFQ, porque a partir do momento em que começam a tomar o medicamento (o Kaftrio) a progressão da doença pára. “Mas se os pulmões já estão danificados, eles não vão melhorar. Não há uma cura. Daí a importância destes medicamentos entrarem o mais cedo possível na vida destas pessoas”, explica.
Constança Braddell tem fibrose quística e escreveu(...)
Mas o paradigma, segundo Sousa Martins, tem sido o atraso na chegada de novos fármacos aos cerca de 400 doentes que em Portugal lutam contra esta doença.
Foi o que sucedeu com os primeiros medicamentos, que surgiram em 2012, como o Kalydeco, e outra droga em 2015. “Estes medicamentos estiveram em processo de aprovação desde 2016 e só tiveram conclusão em fevereiro deste ano. Foram cinco anos”, protesta.
“Infelizmente para a população com fibrose quística parece ser uma regra o atraso a medicamentação inovadora”, lamenta.
Apesar de os inúmeros contatos com o Infarmed, Ministério da Saúde e hospitais, as respostas não aceleram o processo, segundo a associação que representa as famílias dos doentes.
“A resposta é que os medicamentos estão em processo de avaliação para a introdução e financiamento público no mercado português, e que as coisas estão a ser tratadas da forma mais célere, mas a verdade é que o tempo da fibrose quística não pode ser visto da mesma maneira. Há um conjunto de burocracia e de mecanismos que são extremamente demorados no nosso país e que prejudicam intensamente estes pacientes”, analisa Paulo Sousa Martins.
Em relação ao Kaftrio, o medicamento pedido por Constança, a ANFQ diz que o medicamento apareceu em 2019 nos EUA, e a FDA (autoridade reguladora do medicamento nos EUA) adotou-o com carater de urgência.
A Agência Europeia do Medicamento (EMA) fez o mesmo em tempo recorde, “por ele ser muito mais eficaz”, e vários países europeus introduziram-no na Europa. “E foi isto que nós pedimos que acontecesse em Portugal”, diz Paulo Sousa Martins.
“O Infarmed dá como solução a AUE, mas aqui coloca-se uma grande questão. O medicamento não deve chegar aos doentes quando já não há outra solução, se não tomarem este medicamento eles vão para transplante pulmonar ou um cenário ainda pior. Nós precisamos que os medicamentos cheguem aos doentes para evitar a progressão da doença, para evitar que cheguem a este estado e tenhamos casos como o da Constança e de outros que existem. Porque a partir do momento em que estão nesta situação [como a de Constança] o acesso tem de ser imediato. Não pode haver questões entre reguladores e hospitais”, afirma o presidente do ANFQ.
Para este responsável é muito importante que o Infarmed perceba que o medicamento tem de ser introduzido o mais rapidamente possível “para prevenir a progressão da doença e de que as pessoas cheguem a este estado”. E pormenoriza: “É fundamental que estas pessoas tenham vidas ativas e produtivas, e não estejam aos 17 ou 18 anos, no início da idade adulta, agarrados a uma garrafa de oxigénio à espera de um transplante”. “Porque infelizmente e invariavelmente é isso que acontece”, sentencia.
Paulo Sousa Martins explica entender que o Infarmed segue um número de procedimentos para que o medicamento seja introduzido em Portugal e tenham financiamento público. Mas depois, acrescenta que há algumas das fases de aprovação “que são repetidas em relação ao que a EMA faz, como a avaliação fármaco terapêutica”.
“É um processo burocrático que pode ser ultrapassado. As vacinas da Covid-19 é um exemplo claríssimo. A EMA deu a aprovação e rapidamente foi introduzido em todo sistema europeu. A EMA existe para assegurar essas questões”, repete.
Em relação a esta questão, o Infarmed remete para o comunicado da última semana em que explicava que “relativamente ao medicamento Kaftrio, aprovado pela Comissão Europeia a 21/08/2020, é de referir que a avaliação se iniciou ainda antes da atribuição da AIM, após o parecer da Agência Europeia de Medicamentos (EMA). Com essa informação inicial, e nos termos da legislação em vigor, a empresa submeteu em dezembro, formalmente, o pedido de avaliação para efeitos de financiamento público, e no final de janeiro, submeteu a documentação solicitada pelo Infarmed para que possa ser efetuada a referida avaliação”.
Entretanto, e após o pedido de ajuda dramático feito por Constança nas redes sociais, um movimento de solidariedade recolheu 192 mil euros. Um valor que paga os tratamentos com o Kaftrio durante um ano.
Paulo Sousa Martins diz desconhecer a forma como a doente pode com esta verba aceder ao medicamento. E uma fonte ligada ao processo garante à Renascença não discernir como é que a quantia pode ser usada para comprar o fármaco, uma vez que a questão não é financeira, mas de uma autorização para que o mesmo possa ser comercializado em Portugal.
Enquanto isso, Constança continua internada no Hospital Pulido Valente, em Lisboa.
Paulo Sousa Martins conta à Renascença que há vários estudos que indicam que com o Kaftrio “pode haver um aumento da esperança média de vida de 15 anos”.
“É um salto muito elevado, porque além da qualidade de vida destas pessoas, a sua qualidade respiratória é totalmente recuperada. Conseguem fazer uma vida normal, aumentam de peso”, esclarece.
Ocorre uma transformação completa da qualidade de vida das pessoas e das famílias. “Estes pacientes têm um encargo e um fardo muito elevado para manterem os seus pulmões saudáveis. Para tentar evitar bactérias, tomam imensos medicamentos e antibióticos. Fazem fisioterapia diária de uma a duas horas, todos os dias, e não podem faltar para manterem os seus pulmões em forma. E tudo isto tem um impacto gigantesco em termos psicológico e familiar”, diagnostica, para depois rematar: “Se temos um medicamento eficaz que permite que isto seja ultrapassado, é isso que exigimos e que é admissível para estas pessoas”.