08 abr, 2021 - 08:00
Portugal é uma sociedade estagnada há vinte anos, sem crescimento económico e que vai ser obrigada a crescer muito mais no pós-pandemia. Acresce agora um segundo caderno de encargos que resulta das medidas necessárias para responder à pandemia e ao aumento da desigualdade que esta está a gerar.
Os mecanismos de testagem, rastreamento, controlo de circulação do vírus e vacinação não foram por si só rápida e suficientemente eficazes no controle da pandemia. A consequência foi a adoção de medidas de confinamento com um impacto inevitável nas atividades económicas que implicam um maior risco de socialização. Estas foram, em certa medida, temporariamente expropriadas, privadas do seu valor económico. Impor esses sacrifícios a alguns tornou-se, assim, inevitável para o bem de todos. O que não era inevitável foi o facto desse impacto não ter sido suficientemente compensado junto daqueles que foram chamados a fazer um sacrifício maior.
As respostas na economia e na política
Ao contrário do que defendem alguns nem a resposta do Estado prova a necessidade de uma estatização da economia nem a recuperação irá necessariamente conduzir a isso. Mesmo em países liberais vimos medidas de resposta pública porque só o Estado tem condições nesta fase para oferecer essa resposta. Mesmo os mais liberais defendem um papel do Estado em circunstâncias de crise grave e inesperada como esta.
Uma das diferenças importantes passa por decidir se se deve privilegiar respostas públicas controladas pelo Estado, antes, respostas em que o Estado reforça o poder dos cidadãos. Não afirmo que necessariamente defenderia essa medida, mas, uma hipótese que merece discussão e que vai na linha do que tem sido concebido nos EUA, seria o Estado dar um voucher a cada cidadão para consumo em setores particularmente afetados como a cultura, entretenimento, turismo, hotelaria ou restauração.
Na política, qualquer crise profunda como a promovida por uma pandemia cria uma tensão grande entre compromisso e conflito, que são naturais por si só na democracia e na política. Neste contexto, em que muitas vezes o poder público assume poderes excepcionais, o escrutínio exige a fiscalização e apresentação de alternativas, por parte da sociedade e dos partidos políticos e naturalmente o conflito político que de aí resulta.
Mas, por outro lado, para que certas respostas sejam eficazes para a recuperação da economia, precisamos de compromissos e de consensos. Infelizmente, em Portugal criou-se um "fetichismo da estabilidade política" que a torna artificial e falsa. Em Portugal, estabilidade política é apenas sinónimo de manutenção do Parlamento e do Governo e não de estabilidade de políticas públicas que é aquilo que verdadeiramente necessitamos. Temos de superar esse fetichismo para discutir como ter uma verdadeira estabilidade de políticas públicas porque é dela que necessitamos verdadeiramente. Ter estabilidade de governo, por si só, não é nada de particularmente útil. Temos aliás o mesmo partido no governo em 19 dos últimos 25 anos e não foi essa “estabilidade” que nos trouxe crescimento e desenvolvimento.
O grande risco da Europa
No plano europeu, a resposta ao desafio económico e social foi, inicialmente, mais positiva e eficaz do que muitos esperavam. Por outro lado, a Europa acabou aparentemente por falhar onde se esperaria que menos o fizesse, na política de aquisição e distribuição de vacinas. Há o risco de isto representar um golpe muito grande para a confiança dos cidadãos no processo de integração europeia, que assenta muito na percepção daquilo que é o valor acrescentado do que a União nos oferece.
Muitos criticam não apenas o aparente fracasso da União como a circunstância de não poder haver responsabilização. Isso é falso. O Parlamento Europeu pode, por exemplo, até demitir a Comissão. Já defendi que se devia ponderar a possibilidade do Parlamento Europeu criar uma comissão de inquérito que começasse com um inquérito independente, com um conjunto de personalidades acima de qualquer suspeita, muito credíveis e de diversos países europeus. As conclusões desse inquérito deviam depois ser objecto de uma discussão política no Parlamento. Desta devia resultar o apuramento das responsabilidade políticas e respectivas consequências.
Se a Europa não apurar onde deve recair a responsabilidade política pelo que falhou e assacar consequências em função disso, então será todo o processo de integração europeia que será responsabilizado pelos cidadãos. Isso é muito pior. Uma Europa que reconhece as falhas e sabe atribuir a responsabilidade e tirar consequências políticas sai mais forte desta pandemia.
A política e o futuro
Isso leva-nos às consequências de médio e longo prazo. Em primeiro lugar, a pandemia expôs claramente que o problema estrutural que os sistemas políticos têm hoje - e em Portugal em particular - é a incapacidade de incorporar riscos e custos futuros. A política está demasiado enviesada para o curto prazo.
Por essa razão , não estávamos preparados e não nos fomos sequer preparando à medida que a crise se tornava óbvia para responder a ela. Houve momentos consecutivos em que falhou a nossa capacidade de planeamento, de antecipação, de previsão de uma terceira vaga, de preparação do processo de vacinação. Porque é que só se começou no final de novembro ?
Temos que fazer com que o nosso sistema político não seja tão enviesado pelo curto prazo e atenda a estes riscos futuros, não apenas de pandemias, mas também outros como a sustentabilidade ambiental e financeira.
A segunda questão é como organizamos o sistema político para, por exemplo, fazer um melhor uso da ciência. Este foi em Portugal absolutamente caótico ao longo de toda a pandemia. É emblemático que só agora, quando estamos a chegar ao fim, terem finalmente sido nomeadas "task-forces" científicas. E depois naturalmente temos que fazer outras reflexões sobre transformações sociais e económicas que a pandemia acelerou e que a política tem de aprender como regular. É o caso da utilização da informação, do "big data”, do uso da inteligência artificial do trabalho remoto ou teletrabalho. Todas estas mudanças podem aumentar a produtividade e a qualidade de vida das pessoas, mas também comportam riscos. Temos de prevenir os segundos para tirar todo o partido dos benefícios.
Miguel Poiares Maduro (sobre uma conversa com José Pedro Frazão)