15 jul, 2021 - 08:50 • Ana Carrilho
O Governo quer incentivar a natalidade e uma das medidas adotadas foi a de tornar as creches gratuitas para as crianças até aos três anos, do 1º escalão das comparticipações familiares, e do 2º, a partir do segundo filho. No próximo ano letivo, a partir de setembro, a medida alarga-se a todas as crianças dos dois primeiros escalões, ou seja, com rendimentos mais baixos.
Mas nem todos beneficiam desta vantagem: para lhe aceder as crianças têm que frequentar a creche de uma instituição com acordo de cooperação com a Seguração Social, ou seja, do setor público e social, como as IPSS e as Misericórdias.
Como as vagas não chegam para a procura, nomeadamente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, para muitas famílias há que fazer opções: ou pagam uma creche privada, muitas vezes, com apoio da família; ou não podem trabalhar, especialmente as mães.
Alguns municípios já têm planos de apoio às famílias, vários candidatos autárquicos prometem soluções, os partidos (à esquerda) fazem da gratuitidade das creches para todos ponto de honra na negociação do Orçamento de Estado para 2022. E as creches privadas querem passar a integrar a rede que tem apoio do Estado para receber crianças de famílias com rendimentos mais baixos, mas que não têm vaga no setor social.
O governo responde com o Programa Pares 2.0 e o PRR – Plano de Recuperação e Resiliência - com verbas para a construção e alargamento de espaços destinados às creches, especialmente nos concelhos das duas áreas metropolitanas.
Telma Marques tem três filhos: um rapaz com nove anos, que concluiu o 1º ciclo do ensino básico; uma rapariga com seis anos, que entra no 1º ano no próximo ano letivo; e um bebé de 17 meses.
Telma é funcionária pública e recebe um salário pouco acima do mínimo nacional. À partida, teria acesso a um lugar de creche para o filho, pagando uma mensalidade de acordo com o rendimento do agregado familiar. E desde que a medida entrou em vigor, gratuitamente. O problema é que não conseguiu arranjar uma vaga na rede social e, tal como tinha acontecido com a filha do meio, teve que optar por uma creche privada.
“Quando fiquei grávida da minha filha, comecei logo a fazer inscrições das IPSS’s da minha área de residência, o concelho de Vila Franca de Xira. Das seis em que a inscrevi, só uma me respondeu e já ela tinha mais de três anos. Tinha-a numa creche particular, onde arranjei lugar e nessa altura, achámos que já não valia a pena sujeitar a nossa menina – que foi prematura e exigiu muitos cuidados que lá lhe foram dados – a mudar de ambiente. Agora fez seis anos e vai para o ensino público”, conta Telma Marques à Renascença.
Com o filho mais novo, agora com 17 meses, a história repetiu-se. A ronda pelas instituições começou durante a gravidez e nalguns casos avisaram-na logo que “a lista era longa e dificilmente seria chamado”, o que levou Telma a nem fazer a inscrição. Daquelas em que a fez, ainda não recebeu resposta.
A solução passou novamente pela creche privada, aquela que a irmã já frequentava. “Como precisava de organizar a vida e voltar ao trabalho, acabei por o pôr lá, onde tive vaga. Mas tenho que dizer que sou uma sortuda porque tenho quem me ajude a pagar a mensalidade, são os avós”. São pouco mais de 300 euros, incluindo a alimentação. O ano passado, quando os dois irmãos frequentavam o mesmo estabelecimento, a despesa rondava os 500 euros.
O local onde os equipamentos se localizam é determinante para a existência ou não de vagas, frisa Filomena Bordalo, assessora da direção da CNIS – Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade - para a Área da Cooperação, em declarações à Renascença. “As Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto não têm lugares suficientes para satisfazer as necessidades de uma população mais jovem. Noutras zonas do país haverá uma cobertura satisfatória. Sabemos que as nossas associadas estão sujeitas a uma grande pressão”.
O recente Compromisso de Cooperação, firmado entre o setor social e o Ministério do Trabalho e Segurança Social, integra a resposta ao inevitável aumento do número de vagas, com a construção de novos equipamentos ou adaptação de espaços afetos a outras ações, através das verbas do PRR e do Programa PARES 2.0.
Filomena Bordalo afirma que o Compromisso também dá grande destaque à gratuitidade das creches a partir de setembro, para todas as crianças do 1º e 2º escalões das comparticipações familiares, tendo em conta o rendimento e as despesas do agregado. Que só é válida para as instituições e para as vagas contratualizadas com a Segurança Social.
O que acontece muitas vezes, quando as instituições ainda têm vagas além das contratualizadas, é aplicar a medida da gratuitidade a mais crianças, no pressuposto de que as famílias não têm culpa dos seus filhos não frequentarem um lugar comparticipado. Há instituições que aplicam as mesmas regras a todos, revela Filomena Bordado. Mas ressalva: “Isso também depende da situação financeira da instituição, da situação económica e social da família, do que significa a criança entrar na creche. Por exemplo, permitir aos pais trabalhar. As coisas não são lineares, há muitos fatores a ter em conta”.
Filomena Bordado admite que a Segurança Social é de grande precisão na transferência das comparticipações mensais, “quase se pode acertar o calendário”. No caso da compensação pela gratuitidade das creches, “ainda não se atingiu a velocidade de cruzeiro, tem vindo a reduzir-se, mas ainda está em dois a dois meses e meio de atraso nos pagamentos”. A responsável da CNIS admite que não é fácil, também em termos logísticos, “o ideal é que fosse simultâneo comas comparticipações mensais.
“Nas creches particulares, ditas 'lucrativas', também há crianças cujas famílias têm rendimentos muito baixos e que não têm direito ao apoio do Estado porque não estão num equipamento do setor social, com acordo de cooperação. Vão para essas creches porque não conseguem uma vaga nas IPSS’s e não têm apoio. Está errado, o Estado devia olhar para a condição da família e não para o estabelecimento”, diz à Renascença Susana Batista, presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular.
A responsável associativa diz que, em muitos casos, são os familiares, “avós, tios ou padrinhos” que ajudam a pagar as mensalidades, permitindo que os pais – e muito especialmente, as mães – possam deixar os filhos na creche para ir trabalhar.
Por isso, Susana Batista defende que “devia haver uma rede concertada no país, em que o Estado apoiasse as famílias mais carenciadas para poderem ter os filhos numa creche, qualquer creche. E não existe, as creches privadas não estão nessa rede apesar de cumprirem todos os requisitos e terem alvará passado pela Segurança Social. Era uma forma de dar resposta às necessidades das famílias e para algumas, sobreviver”.
Susana Batista afirma que, por causa da pandemia e dos custos acrescidos em materiais, segurança sanitária e recursos humanos que ela implica, aliado à redução da receita porque muitas famílias deixaram de ter rendimentos para suportar as mensalidades, algumas creches não conseguiram sobreviver. “Sem um número mínimo de crianças é insustentável ter uma creche sem apoio do Estado e em setembro vamos ter menos equipamentos a funcionar”.
Além disso, a presidente da Associação de Creches alerta que será necessário aumentar os preços. “Manter os que se praticam, é impossível e provavelmente vamos perder clientes. Mas é um risco que temos de correr”.
Susana Batista diz que, fora das grandes cidades, os preços praticados, com alimentação, em média rondam os 300 euros. Mas em Lisboa e no Porto, onde as rendas também são mais altas, facilmente sobem para 400-450 euros.
Em 2012 a Câmara de Cascais criou as “Bolsas Sociais”. “As creches da rede social estavam lotadas e as privadas tinham vagas, mas as famílias de baixos recursos que não conseguiam uma vaga para os filhos nas IPSS´s também não podiam pagar as particulares. Decidimos avançar com o programa e atualmente, comparticipamos a mensalidade dessas crianças com 190 euros. A família paga o que pagaria na rede social, tendo em conta os seus rendimentos”, explica à Renascença Frederico Almeida, vereador da Educação e Ação Social da Câmara de Cascais.
Em nove anos autarquia já atribuiu mais de 670 bolsas e este ano apoia cerca de quarenta famílias. Cascais tem orçamentados 150 mil euros anuais para este protocolo com as creches privadas. E recentemente, alargou o programa ao pré-escolar, com montante igual “porque apesar de a partir dos três anos poderem integrar a rede pública, muitas crianças, com essa idade não tinham vaga porque os mais velhos (de 4 e 5 anos) têm prioridade”, diz Frederico Almeida.
Para o vereador este programa é, igualmente, uma forma de integração social de crianças de estratos sociais diferentes. E por outro lado, permite que os pais, tendo os filhos na creche, possam trabalhar, ter o seu rendimento e não precisem de recorrer a outros subsídios.
Foi para ajudar as jovens famílias que procuravam a Câmara em busca de soluções que Leiria também avançou com um programa do mesmo tipo.
O “Creche para Todos” nasceu em 2019, “da constatação com os parceiros da rede social, que não havia vagas para todas as crianças até aos três anos e que muitas famílias não tinham capacidade de pagar a frequência de um estabelecimento privado”, diz à Renascença Ana Valentim, vereadora responsável pelo pelouro do Desenvolvimento Social.
A maior procura vem de famílias da zona urbana de Leiria e a Câmara comparticipa as mensalidades em 80%,60% ou 40%, conforme o escalão de abono de família em que a família se integra. O valor de referência sobre o qual é feito o cálculo são 300 euros. Segundo Ana Valentim, 2021 foi o ano em que se registou o maior número de candidaturas. Atualmente, cinquenta crianças beneficiam deste apoio.
Para a vereadora, esta foi uma medida muito importante para a inserção social e autonomia das famílias, já que, em muitos casos, face a uma oferta de emprego – nomeadamente através do IEFP – pais e sobretudo mães, eram confrontados com a necessidade de um lugar de creche para poderem trabalhar e sem o conseguir na rede social, não tinham como o pagar, no particular.
Em véspera de eleições autárquicas, há vários candidatos que colocaram o assunto no seu programa. A começar por Fernando Medina, presidente e candidato a renovar o mandato na capital que promete apoiar as famílias “até um determinado patamar de rendimento” para terem uma redução progressiva, chegando à gratuitidade no final do mandato.
Uma questão que também conta para as negociações do Orçamento de Estado de 2022 e de que, por exemplo, o PCP, não abre mão.
Em informação enviada à Renascença, o gabinete da ministra do Trabalho e Segurança Social refere que “20 mil é “o número médio mensal de crianças abrangidas pela portaria nº271/2020 (que estabelece a gratuitidade das creches para crianças de famílias do 1º escalão da comparticipação familiar e pelo 2º escalão, a partir do segundo filho, tendo em conta o rendimento desde que frequentem instituições do agregado e desde que frequentem instituições do setor solidário). No próximo ano letivo alarga-se a todas as crianças do 2º escalão de rendimentos.
Até ao momento há 42 novos contratos para creches PARES, com 2.674 vagas, dispersas por 27 concelhos das Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto e noutros concelhos com baixa cobertura, envolvendo um investimento do Instituto da Segurança Social de 14 milhões de euros.
Além disso, no âmbito do PRR – Programa de Recuperação e Resiliência – deverão ser criados outros 5500 lugares de creche e jardim de infância nos territórios com maiores necessidades de resposta.
Há pouco mais de uma semana, o Governo e as organizações do Setor Social assinaram um Compromisso de Cooperação para os próximos dois anos e que prevê um aumento de 3,6% no financiamento às respostas sociais. Nomeadamente para fazer face aos custos acrescidos que a pandemia determinou.