21 jul, 2021 - 06:30 • Liliana Monteiro
Os megaprocessos judiciais criticados por todos os atores da justiça, e fora dela, são hoje uma realidade mais do que vincada na prática judicial e algo vai mal na justiça porque esta realidade não muda, considera Alípio Ribeiro, antigo diretor da Polícia Judiciária.
Em entrevista à Renascença, afirma que é “como se houvesse uma investigação criminal sem serenidade e que é feita de estados de alma e como se todos os atores fossem redentores morais”.
Magistrado experiente e conhecedor do meio investigatório português, Alípio Ribeiro explica que é relativamente fácil começar estes processos, difícil é depois dar-lhes consistência.
“O que pergunto é se para dar consistência é preciso fazer este espetáculo?”, questiona o ex-responsável pela Judiciária.
Para Alípio Ribeiro, há uma ligação perversa entre os megaprocessos e a violação do segredo de justiça, “é como se houvesse um propósito de criar uma vox popoli condenatória que vai perturbar todo o processo”.
“Continuamos aqui a falar de humilhação, como se ser suspeito ou arguido tivesse também como medida de coação a perda da dignidade pessoal. Isto custa porque a investigação criminal apesar de tudo tem de defender valores essenciais da pessoa.”
Preocupado, revela que “há um espetáculo que está associado aos megaprocessos que não é apenas da responsabilidade dos media: espetáculo da prisão, das buscas, a humilhação a que muitos arguidos são sujeitos não pode deixar de nos preocupar e isso nasce com os megaprocessos”. São processos que “desiludem”, afirma, e que criam “uma perigosa insensibilidade social. As pessoas não reagem, acham normal, como se fosse o padrão da investigação, isto não pode ser assim!”.
A espiral está instalada, ‘todos são condenados antes de o serem, todos são condenados ainda que absolvidos’.
Questionado sobre porque se mantém, afinal, este modelo de processo e de investigação diversas vezes já diagnosticado negativamente, afirma: “sei que é tentador, principalmente na criminalidade económica, quando se começa a ver mais um movimento de dinheiro e outro e mais outro, a tentação é ir avançando, ir vendo e recolhendo, mas isto já não é o espírito da investigação policial e criminal, há já uma certa tendência para o voyeurismo”.
Alípio Ribeiro acrescenta que “a investigação não se pode perder nisso, neste tipo de processo se calhar nunca se chega a um fim. Se quiser ir andando, andando e andando, há sempre transferências de dinheiro num sentido e noutro. Se formos atrás disso tudo é evidente que nos vamos perder. A investigação não pode ser um labirinto e o julgamento não tem possibilidade de julgar bem labirintos”.
O que é necessário para mudar? Para Alípio Ribeiro, magistrado jubilado do Ministério Público, a resposta é simples e a aplicação no terreno também o devia ser. “Quantos estudos foram feitos dentro das próprias magistraturas relativos a processos que foram gloriosos insucessos? Nenhuns. Quantas pessoas vieram dizer falhámos aqui e acolá? Isso é que é importante! E não podemos dizer que este ou aquele foi absolvido porque tem dinheiro ou um advogado bom. Não é nada disso, temos é de aceitar que as investigações foram más”.
Processos como o caso dos submarinos, dos sobreiros, do Monte Branco, ficaram fechados na gaveta após decisão final e trânsito em julgado. E para processos que terminam insatisfatoriamente e têm decisões totalmente opostas à investigação, “falta uma reflexão conjunta de quem tem responsabilidade desses megaprocessos”.
“Não pode ser um trabalho solitário de A ou B, é preciso criar equipas em que haja vários estratos de pessoas de responsabilidade maior. Isto não é fazer quebrar a autonomia dos magistrados, mas sim fazer ver que uma pessoa ou duas sozinha sem enquadramento não tem instância crítica e a hierarquia é que no fundo deve ser essa instância para que também se diga que é ela a responsável por esses processos”, argumenta.
O antigo responsável pela Polícia Judiciária lamenta, assim, que os megaprocessos sigam para o arquivo sem qualquer análise sobre o que correu bem ou mal, considerando até que deviam ser dadas explicações públicas precisamente sobre o que falhou. Só assim, considera, a justiça pode melhorar o seu trabalho. “As estruturas são muito fechadas e não têm capacidade de análise retroativa que era importantíssima”.
“Não aprendemos nada. Era bom estudar os processos para isto não se repetir e parece que nunca ninguém quer aprender com estes casos”, critica, recordando que “há anos que se diz que nada há mais de contraproducente na justiça que os megaprocessos, mas eles continuam. Porquê? Não há uma estrutura hierárquica que defina padrões de procedimentos? Não há. Eles continuam a surgir e a ser inglórios para a justiça portuguesa”.
Alípio Ribeiro constata que, “muitas vezes, estes casos têm grandes alegações, poucos factos e pouca prova, depois no confronto com o contraditório tudo se complica e há uma desilusão entre o mediatismo e os resultados finais que resulta disso mesmo”.
“Precisamos de boas investigações que descodifiquem e expliquem o que há de errado, por exemplo, nas contas bancárias, porque é que elas são crime e não podemos entrar numa teia como se fosse pesca de arrasto. Levamos tudo para depois no fim se levar muito pouco, é preciso ser-se muito rigoroso e preciso, não se pode cair na tentação das generalidades”, conclui.
Nesta entrevista à Renascença, o magistrado considera que, “se a pessoa hoje é presa, ainda que seja para aplicar uma medida de coação, então é porque a investigação se não está finda está lá próxima. Não podemos é andar depois mais dois anos, ou quatro ou cinco ou seis a investigar. É preciso também saber medir o tempo e ter a noção do tempo futuro. Saber também que quem investiga ou acusa, não é para si, mas para outros apreciarem e, por conseguinte, ter cuidado quando diz: ‘eu acho que estes indícios são suficientes’, porque é preciso ter sempre a humildade de perguntar, serão mesmo?”.
Alípio Ribeiro não consegue compreender como se instalou aquilo a que chama de “modos precipitados de constituição de arguido”.
“Esta coisa de prender para aplicar uma medida de coação e depois surge a lenga lenga do perigo de fuga. Isso é um conceito de direito, uma conclusão, o que interessam são os factos que levam a essa conclusão e, por vezes, não existem. Digam: 'o senhor já tinha renovado passaporte e tinha bilhete de ida e hotel'. Destruição de prova? A mesma coisa. É sempre no campo das generalidades. É preciso justificar porque é que há perigo e aí o arguido pode defender-se”, sublinha.
“A ideia que tenho é a de que há uma justiça de província, de proximidade que responde razoavelmente às questões que lhe são postas. Não se discutem as grandes causas, mas as pequenas causas, que são grandes para aquelas pessoas. Depois há outro tipo de justiça e que é a administrativa e que é dramática para o cidadão. Há muita litigiosidade entre o cidadão e o Estado, interesses elevados e muito complexos, e as pessoas andam anos e anos para terem a resolução dos seus casos. Depois os megaprocessos de natureza criminal tomaram conta da justiça e é a ideia que temos dela. Medimos a justiça pelos megaprocessos”, afirma Alípio Ribeiro.
O magistrado considera que Portugal tem um quadro legal suficiente para que a investigação judicial possa ter sucesso, que existem clamadas alterações legislativas “absolutamente desnecessárias” e que também aqui falta a avaliação dos benefícios que trouxeram.
Por fim, em jeito de conclusão, diz que “esta ideia de que podemos ir a todas, não é possível. Precisamos de ser transparentes para que não se diga que vamos àquelas por um motivo pessoal, ou que fomos ao Benfica por ser do Benfica, fomos depois ao Porto porque fomos ao Benfica e ao Sporting porque fomos aos outros dois. Não se pode deixar criar essa ideia” descredibilizando a investigação judicial.