04 out, 2021 - 14:07 • Ana Carrilho
É a 2ª edição do ‘bootcamp’ da Patient Innovation e concorreram mais de 80 projetos, “todos muitos promissores”, revela à Renascença Pedro Oliveira, fundador da plataforma e professor na NOVA SBE e na CBS – Copenhagen Business School.
A Patient Innovation é uma plataforma internacional multilingue e sem fins lucrativos, que dá voz às soluções que, em todo o mundo, doentes, cuidadores ou familiares encontram para resolver os problemas diários, causados pelas respetivas patologias clínicas.
Em geral, as soluções nascem para uma resposta individual, mas são, em muitos casos, partilhadas pelos criadores com “o resto do mundo”, para benefício de todos.
Para que tal aconteça, é necessário ultrapassar várias fases, de apuramento da ideia/solução/aparelho/aplicação, experimentar, concluir a validação e certificação pelas autoridades médicas dos diversos países ou internacionais. E conhecer as regras para a sua comercialização.
Através do ‘bootcamp’ – um programa de aceleração – os membros das 11 equipas selecionadas, com participantes de nove países, adquirem mais competências para desenvolver os seus projetos.
Na primeira semana, que decorreu na NOVA SBE de 30 de agosto a 3 de setembro, em Carcavelos (em modo presencial), as equipas apresentaram e focaram-se no desenvolvimento e validação das suas soluções.
A segunda semana de trabalhos decorreu de 13 a 17 de setembro em modo online, a partir de Barcelona. Durante esse período, os participantes desenvolveram os respetivos planos de negócios.
A última semana de trabalhos, entre 4 e 8 de outubro, volta a ser presencial mas na CBS, em Copenhaga. É a altura para os membros das equipas aprenderem a consolidar, implementar e difundir as suas soluções.
No final do ano, todas as equipas vão participar no ‘bootcamp’ do EIT Health, a maior organização europeia dedicada à Saúde e Envelhecimento, do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia.
Porque o orçamento (que inclui o pagamento das viagens e estadias dos formandos) não chega para tudo e é necessário assegurar que corra tudo bem, com os melhores resultados possíveis, dos 80 foram escolhidos apenas 11 projetos – “para o caso de alguém desistir, porque o ideal seriam dez. Mas ninguém desiste. Já no ano passado aconteceu o mesmo”, revela Pedro Oliveira com satisfação. E desta vez, há duas equipas portuguesas.
“Selecionámos alguns projetos que considerámos mais promissores, mas quando temos de escolher entre 80 muito bons, chegamos ao fim invariavelmente insatisfeitos. Podíamos fazer outro ‘bootcamp’ com os dez seguintes e teríamos também uma grande qualidade”, admite Pedro Oliveira.
Um critério fundamental de seleção prende-se com o impacto que a solução apresentada pode ter para o maior número de pessoas: doentes e cuidadores informais. E também com o problema que abordam. “Os projetos correspondem a necessidades que se sentem na sociedade”.
São desenvolvidos pelos próprios doentes, cuidadores ou familiares. “Focamo-nos no seu empreendedorismo. Por exemplo, não há aqui médicos de propósito. O nosso nicho é este tipo de pessoas que precisam muito de ajuda e que são realmente diferentes de outro tipo de empreendedores”, explica o criador da plataforma e mentor do ‘bootcamp’.
“Quando um doente ou um cuidador informal inova para si próprio, há uma fase inicial em que não está a pensar em comercializar aquele ‘device’. As pessoas querem é resolver o problema que têm em casa. Normalmente, é assim que tudo começa”.
São pessoas que têm competências de empreendedorismo completamente diversas e diferentes daquelas que possuem os alunos das universidades parceiras, e que também acabam por ser integrados na ajuda ao desenvolvimento das soluções, numa fase posterior ao ‘bootcamp’.
“A maior parte dos nossos alunos são completamente saudáveis, querem ser empreendedores, mas ainda não têm nenhuma boa ideia; de certa maneira, andam à procura e ainda não têm nenhum bom produto para pôr no mercado”. No caso das pessoas que participam no ‘bootcamp’, o que é impressionante é que têm quase sempre uma história pessoal para contar. Não é uma realidade que lhes é distante; por vezes é história dele/dela”.
A colaboração entre empreendedores e alunos acaba por ser fundamental e resultar em benefícios para ambas as partes.
“Aqui na NOVA, quando detetamos um desafio de inovação que precisa de ser ultrapassado, alocamos um conjunto de alunos que fazem um trabalho muito aplicado de tentativa de ajuda destes empreendedores”, explica o professor universitário. E dá alguns exemplos, como as regras de exportação para determinado país, a fiscalidade ou os reembolsos, que em produtos médicos são questões muito importantes. Outras vezes, são questões tecnológicas, já que as equipas estão em diferentes fases de desenvolvimento.
Um dos problemas que muitas equipas ainda têm de resolver é a validação médica. “Ou seja, já têm um protótipo, até já funcionou com eles, mas antes de ir para o mercado como produto médico tem que ser validado. O que implica haver um grupo de doentes que vai acompanhar o grupo e depois, receber o produto, para se perceber o que acontece com eles. Os nossos alunos ajudam os empreendedores a resolver estes desafios, que por vezes são muito difíceis”.
Esta competência é também uma ótima forma de ajudar os alunos na sua formação, frisa Pedro Oliveira. “Interagem com doentes concretos, com problemas concretos, muito reais. Percebem que a vida prática é muito mais complicada do que parece nos livros”.
Cada um dos projetos que está a ser desenvolvido neste ‘bootcamp’ nasceu inspirado pela necessidade real de algum dos elementos da equipa ou de alguém muito próximo. Há uma história real que o suporta e o justifica.
ASense Glove é uma luva muito especial, com sensores nas suas extremidades que ajuda a mulher na apalpação da mama e pode detetar qualquer tipo de anomalias que surjam na textura do tecido mamário, facilitando um diagnóstico precoce de cancro da mama.
Na prática, é um dispositivo médico doméstico, que funciona conectado a uma aplicação móvel. “Ou seja, se a luva detetar alguma anomalia, a aplicação a que está conectada vai recolher analisar os dados. E, em caso de necessidade, alerta para a necessidade de ir ao médico”, explica o criador, Francisco Nogueira, engenheiro biomédico.
A solução foi inspirada pela prima Filipa que, aos 40 anos, foi diagnosticada com cancro da mama. “Aconteceu em fevereiro de 2019. A Filipa fazia auto-apalpação da mama e um dia, no banho, sentiu um nódulo. Mas até se aperceber que não desaparecia e que não diminuía, passaram cinco meses. Só em junho é que foi ao médico e teve que ser imediatamente operada, porque o cancro era maligno. Em fevereiro já era, mas podia ter sido detetado muito mais cedo e num estado menos avançado”, conta Francisco Nogueira.
Para o fundador da Glooma, start-up de saúde digital na área do cancro da mama, a prevenção é cada vez mais importante, mas com a pandemia, ficaram por fazer mais de 400 mil rastreios – eco mamárias e mamografias. “Um dispositivo que possa ajudar as mulheres, é o nosso objetivo”.
Neste momento, a luva está em fase de estudos clínicos, para já, em colaboração com os hospitais CUF Descobertas e de Santa Maria. Mas o ideal é chegar a mais unidades hospitalares para ter a maior amostra possível e testar a tecnologia no mundo real, passo obrigatório para a validação clínica do produto.
Depois, o objetivo é que a luva seja certificada pelo Infarmed, recomendada pelos médicos e vendida em farmácias e parafarmácias, tornando-se acessível. E, claro, precisa de financiamento para a produção em escala.
A participação no ‘bootcamp’ do Patient Innovation é uma oportunidade para conhecer mais pessoas que também têm interesse na área da saúde e dos cuidados e, por outro lado, aprender muito no processo de desenvolvimento do negócio. Francisco está otimista e espera que a Sense Glove entre no mercado no segundo trimestre de 2023.
Larisa Aragon Castro é uma sobrevivente de cancro da mama. Foi diagnosticada em 2018. “Quando se é confrontado com um diagnóstico destes, começa-se à procura de informação sobre o que lá está escrito. E o que encontrei foi uma grande quantidade de informação que me deixou confusa. Foi aterrador por causa de toda essa linguagem que encontrei na internet”, revela à Renascença.
Mudar essa sensação tornou-se um objetivo para esta mexicana que há vários anos vive na Suíça. Com outras pessoas noutros pontos do país e com especialidades profissionais e académicas diversas, formaram uma equipa e avançaram para a criação da SumMed.
“A nossa missão é democratizar a informação médica para a tornar acessível e compreensível aos doentes, cuidadores informais e familiares. Muitos dos relatórios têm jargões médicos muito difíceis de entender e as pessoas acabam por ainda ficar mais alarmadas”.
Larisa Castro explica que isso pode ser feito através de uma aplicação em que as pessoas colocam os seus relatórios médicos ou algum artigo científico em que se abordem as opções de tratamento. Alguns segundos depois de a informação ser enviada, a pessoa recebe a “tradução” do relatório num resumo, “em linguagem simples e compreensível”. Recebe ainda indicação sobre as fontes mais credíveis acerca do seu problema clínico.
A empreendedora garante que não há qualquer problema em relação à proteção de dados pessoais. Há apenas uma simplificação da linguagem do relatório, que pode ser traduzido para 60 línguas. “Qualquer coisa é melhor do que o Dr. Google”, sublinha.
Para a equipa de Larisa, o mais interessante do ‘bootcamp’ é conhecer outras start-ups, os diferentes projetos, os desafios que têm de ultrapassar e perceber como é que podem resolver os problemas que se colocam ao desenvolvimento dos projetos.
Tentar saber qual é o estado de saúde de alguém que se encontra hospitalizado e não conseguir entrar em contacto com os profissionais de saúde que o acompanham gera, normalmente, um grande stress nos familiares. E essa ansiedade intensificou-se claramente com a pandemia de Covid-19.
A Peer Care, uma aplicação desenvolvida pela segunda equipa portuguesa que este ano participa no ‘bootcamp’ da Patient Innovation. pretende evitar essas situações.
Um dos seus criadores, Sandro Costa, explica à Renascença que o objetivo é melhorar a comunicação hospitalar através de uma aplicação que envia informações automáticas aos familiares que estão fora do hospital e querem ter notícias. Aprovadas pelos profissionais de saúde e pelos doentes, quando é possível.
Mais uma vez, a inspiração veio do caso vivido por um dos membros da equipa. “Identificámos a dor de um colega. Teve um familiar próximo internado e sentiu essa dificuldade. Percebeu que quando precisava de informações, de saber o estado de saúde ou a evolução, era muito difícil ter informação e fidedigna. A partir dessa situação a ideia começou a germinar e fizemos evoluir o conceito”.
André Silva, outro membro da equipa da Peer Care que também é profissional de saúde, considera que a aplicação é “uma mais-valia enorme” também para os médicos e enfermeiros que estão a acompanhar o doente.
“Vamos conseguir otimizar os cuidados que prestamos aos doentes se tivermos algo que facilite a comunicação. Normalmente, perdemos muito tempo porque a maior parte das vezes a comunicação é feita por telefone, temos de estar 10-15 minutos a explicar o estado clínico do doente aos familiares. Com a aplicação, se em 3-4 linhas conseguirmos dizer ao familiar que o doente passou bem a noite, que não teve dores, que comeu, na minha ótica de profissional de saúde, é fantástico”, admite.
Questionados sobre as situações mais complicadas, os empreendedores explicam que o contacto pessoal não vai desaparecer. “O distanciamento vai ser encurtado porque o problema que existe hoje é que as pessoas ligam 10-15 vezes para o hospital e nem sequer conseguem ser atendidas. A aplicação vai agilizar esse processo e reduzir a ansiedade das pessoas que esperam notícias”.
A equipa é do Porto e neste momento está a desenvolver o protótipo para iniciar os testes numa unidade de saúde que esteja disponível para testar o conceito.
A mãe do espanhol Raul Dorado morreu vítima de ataque cardíaco, quando estava na rua. O socorro não chegou a tempo e também não havia por perto um desfibrilhador.
Depois desta fatalidade, Raul decidiu fazer exames e descobriu que sofria da mesma doença congénita que a mãe. Tem um pacemaker, mas como pratica desporto, sentiu receio de nalguma ocasião ser atingido na zona onde tem o aparelho.
Foi o que o levou a desenvolver uma proteção que usa sobre o corpo quando vai jogar futebol ou ténis. “Assim, posso praticar desporto e manter o meu coração protegido de alguma agressão. Pensei que se esta era uma boa solução para mim, também poderia ser para outras pessoas nas mesmas condições”, diz à Renascença.
A Daiprox já está numa fase mais adiantada do processo: “estamos quase prontos para a comercializar”, revela Raul Dorado. “Já está conforme a regulamentação de saúde, já registámos o produto, fizemos a validação da marca e experimentámos com doentes”.
Frisa ainda que o objetivo “não é fazer fortuna, mas tornar possível que qualquer pessoa, em qualquer ponto do mundo a possa usar como proteção. O projeto ainda não tem financiamento, por isso precisamos de investidores”.
Raul Dorado tem ainda outra ambição: gostaria muito que a seleção da Dinamarca fosse embaixadora do produto. Para o empreendedor seria muito significativo. No Europeu de futebol, um dos seus jogadores, Christian Ericksen, caiu inanimado quando a Dinamarca defrontava a Finlândia. Foi prontamente socorrido e isso salvou-lhe a vida. Mas na maior parte dos casos, isso não é possível. E nalgumas situações, nomeadamente em desporto, em que os choques acontecem com frequência, o uso de uma proteção como a Daiprox para o pacemaker ou desfibrilhador implantado (ICD) poderá – na opinião de Raul Dorado – fazer a diferença.
É com indisfarçável orgulho que o co-fundador da Patient Innovation fala dos projetos desenvolvidos nos ‘bootcamp’.
Em relação aos que participaram na 1.ª edição, há um ano, “não morreu nenhum e estão em diferentes fases de desenvolvimento. Depois do ‘bootcamp’ é que começa o trabalho a sério”, sublinha Pedro Oliveira.
Ainda assim, há um que começou logo a destacar-se no ano passado: os óculos digitais criados pelos pais de uma criança com visão reduzida e que lhe dão informação adicional.
Pedro Oliveira explica: “com aqueles óculos, o miúdo não vê uma mesa real, mas vê uma mesa simulada. A mesa até lá está, ele não consegue vê-la diretamente com os seus olhos, mas consegue ver uma imagem que lhe diz que há ali algo que ele tem que evitar; é o suficiente para não tropeçar. E havendo uma grande quantidade de pessoas com diferentes níveis de visão, é muito interessante”.
O projeto deu nas vistas logo no ‘bootcamp’ e ganhou a competição interna. Meses depois também venceu a competição entre 350 projetos, promovida pela EIT Health.
“Isso foi muito importante para lhes dar recursos financeiros para ir para o mercado. Neste momento, os óculos já estão a ser comercializados em diversos países, nomeadamente através de empresas parceiras que garantem a venda e a assistência”, conta.
Patient Innovation
Plataforma Patient Innovation, criada por Pedro Ol(...)