14 out, 2021 - 07:50 • Pedro Mesquita , André Rodrigues
“Oi, galera”, “Beleza?”. São as expressões do português que se fala no Brasil e que estão a tornar-se cada vez mais frequentes no vocabulário das crianças portuguesas. Basta entrar no YouTube e, rapidamente, se percebe que escolha é coisa que não falta.
Um dos mais populares em Portugal é Luccas Neto, que já superou a marca dos 32,6 milhões de inscritos no seu canal.
É um negócio de família, pode dizer-se: Luccas é irmão de Felipe, um dos primeiros youtubers a fazer sucesso no YouTube. O canal mais voltado para o público adolescente conta com mais de 40 milhões de inscritos e mais de 10 mil milhões de visualizações.
Mas é na faixa entre os quatro e os 10 anos que o fenómeno regista um crescimento mais acentuado. Há poucas crianças dentro destas idades que nunca tenham visto, pelo menos, um vídeo de Luccas Neto.
O que mais preocupa pais e educadores é o facto de verem e ouvirem horas a fio, muitas vezes sem controlo parental.
E acabam por imitar: "Oi galera, como é que você está? Digo esse tipo de coisas que também aprendi com o Luccas", conta à Renascença Vasco (nome fictício), um menino de oito anos.
"Já pedi aos meus pais, se eu podia ser youtuber, mas eles ainda estão a pensar", confessa Rita (nome fictício), com nove anos de idade.
Da imitação ao sonho de ser uma estrela do streaming infantil, vai um passo demasiado curto. O português sambado vai gradualmente substituindo o original.
"A minha mãe não se importa, mas o meu pai não gosta muito que eu fale assim", reconhece a menina de nove anos, aluna na Escola das Devesas, em Gaia.
Outra casa, outra família, a mesma preocupação: Vasco admite que expressões como ‘oi’ são frequentes. Mas os pais não lhe dão margem para abrasileirar o português. “Eles já me avisaram de muita coisa que eu digo em brasileiro e não digo em português”, conta.
A fluência e a rapidez com que as crianças interagem umas com as outras em português do Brasil surpreendem as famílias e, também, os professores.
A sala de aula e, sobretudo, o recreio tornaram-se os locais preferidos para replicar falas que vão de Luccas Neto a Maria Clara e JP, de Luluca a Felipe Neto e tantos mais que tomam uma parte do tempo livre das crianças que crescem de olhos pregados nos tablets e nos smartphones.
“Eles até me ensinam, porque eu questionei como é que tenho alguns alunos que ainda não conseguem ler e eles encontram estratégias, dizem as palavras Luccas Neto no microfone do Google e aparece-lhes", reconhece Carmen, professora do primeiro ciclo do Ensino Básico.
Também Cristina, educadora de infância, sente essa tendência nos mais pequenos: “eu sinto que as crianças com quatro, cinco ou seis anos têm livre acesso. Quase todos têm um tablet ou acedem ao telemóvel dos pais e eu vou descobrindo personagens de youtubers”.
A chave do sucesso destas personagens está nas situações que os vídeos retratam. As guloseimas estão presentes nos vídeos de Luccas Neto, a par com alguns comportamentos menos corretos que são retratados, até em contexto de sala de aula.
Vasco reconhece que o seu ídolo Youtube “goza com as pessoas e com a professora”.
Mas, depois, “aprendeu que gozar as pessoas, ainda por cima a professora é mau, porque, depois, ele tem de levar os castigos".
E esta é a mensagem que este fã retém, a par de outras menos didáticas servidas a toda a hora.
Os vídeos são como as cerejas. Cristina relata duas situações em que alunos de nove e dez anos de uma das suas turmas “adormeceram por exaustão… Eles relatam que estão a ver no telemóvel dos pais ou no tablet esse tipo de vídeos".
"Se uma criança acorda a meio da noite e tem um tablet no quarto, se estiver sozinha, pode fazer o uso que quiser do tablet. Eles podem ter os headphones e ninguém se apercebe do que eles estão a ver”, acrescenta.
Para Cristina, o mais preocupante na ausência da regulação parental no consumo destes conteúdos é a ausência “de quem os ajude a terem um espírito crítico daquilo que eles estão a ver”.
“Eles estão a ter acesso a muita coisa que não controlam, não têm ninguém que os ajude a perceber se aquilo está certo ou se foi só uma brincadeira disparatada que nós também já tivemos quando éramos crianças", remata.