02 nov, 2021 - 08:07 • Henrique Cunha
O presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, Pedro Vaz Patto, entende que a aprovação da lei por um Parlamento “com falta de legitimidade política, parece e é claro que é deliberado”.
Em entrevista à Renascença, o jurista afirma que é possível encontrar inconstitucionalidades no novo texto conhecido na passada sexta-feira e entende que o Presidente da República deve recorrer ao veto político “com base na sua convicção pessoal”.
É questionável a legitimidade do Parlamento para discutir e votar a Eutanásia; um Parlamento, tudo indica, à beira da dissolução?
Eu acho que sim. Por um lado, porque está já anunciada a eventualidade, quase certeza da dissolução da AR e, portanto, de alguma maneira a legitimidade da Assembleia da República (AR) esbate-se em termos políticos, não digo em termos jurídicos porque vai haver outras eleições e a composição da nova Assembleia pode ser diferente. Mas também porque a discussão pública desta matéria foi praticamente inexistente. Eu já fui solicitado a comentar a nova versão da lei, mas não tinha acesso a ela. Portanto, por muito reduzida que seja a alteração da lei, ela deveria ser fruto de um debate que não se reduza aos deputados. A democracia participativa é isso. É dar a possibilidade de outras pessoas se pronunciarem sobre estas alterações.
E o espaço que medeia o conhecimento do novo texto da discussão e votação no Parlamento é de facto diminuto?
Quando foi da aprovação inicial foram ouvidas várias entidades, formou-se um grupo de trabalho, etc. Eu não estou a dizer que se repita tudo isso, mas há aqui algumas questões que suscitam ainda algum debate.
Olhando para o novo texto, acabam aqui os problemas constitucionais do diploma? O novo articulado apresenta uma definição exaustiva do que é "lesão definitiva" que era uma das interrogações que Tribunal Constitucional tinha deixado….
Devo dizer que a minha opinião pessoal é um pouco diferente daquela que teve maioria no Tribunal Constitucional. Acho que a inconstitucionalidade da lei vem da sua contrariedade ou princípio da inviolabilidade da vida humana que é afirmado de uma forma categoria na Constituição e ainda não encontrei justificação para esta quebra deste princípio tão importante. Mas a questão que o Tribunal levantou foi a da violação do princípio da determinabilidade da lei, isto é, que a lei usava conceitos não suficientemente determinados. E é preciso muito cuidado quando está em causa a aplicação de penas como sucede no direito penal, há que ter muito cuidado na utilização destes conceitos indeterminados sob pena de se cair numa arbitrariedade, num subjetivismo, na interpretação das leis e, portanto, alargar a possibilidade de aplicação de penas, no caso do direito penal. No caso da eutanásia a questão é diferente e neste sentido é inédita, pois não existe outra situação em que um conceito indeterminado, e a interpretação do conceito indeterminado seja decisiva para autorizar ou não autorizar que seja provocada a morte de uma pessoa. É esta questão que está em causa na eutanásia. A nova versão da lei continua a usar conceitos indeterminados na definição do que é lesão definitiva de gravidade extrema. Usam-se conceitos como o de amplamente incapacitante; uma lesão amplamente incapacitante. O que é que é amplamente? o que é que é incapacitante?
Ou seja, na sua opinião, o Tribunal pode ainda argumentar pela inconstitucionalidade?
É a minha opinião. Acho que continua a haver uma indeterminação destes conceitos. O texto refere por exemplo: "que não haja melhoria significativa". E eu pergunto o que é que é melhoria significativa, o que é probabilidade elevada? Pronto vão-me dizer então como é que se conseguem determinar melhor estes conceitos? Se calhar é impossível. E, portanto, entramos aqui num beco sem saída. Na minha opinião evita-se este alargamento progressivo do campo de aplicação da lei - a chamada rampa deslizante- é algo que, em meu entender, já o disse várias vezes é inevitável. E, portanto, só cortando o mal pela raiz, isto é, não aceitando a legalização da eutanásia é que se evita estas situações. Provavelmente o Tribunal Constitucional não seguirá esta opinião e até pode considerar que desta forma os conceitos já estão suficientemente determinados.
Na convicção de que a lei é aprovada no Parlamento, o que ainda se pode esperar do Presidente da República?
O Presidente da República já suscitou o controle de constitucionalidade da lei. Poderá voltar a fazê-lo em relação a esta nova versão, e verificar se aquela exigência do Tribunal Constitucional é respeitada ou não. Mas para além disso, ainda não usou uma faculdade que tem e que não fica esgotada pelo facto de ter suscitado a fiscalização preventiva e que é o veto político. O Presidente da República tem essa possibilidade. Pode fazê-lo com base na sua convicção pessoal. Já ouvi dizer que não está em causa a sua convicção pessoal, mas não vejo porque não. Porque da mesma forma que os deputados votam de acordo com as suas convicções por uma questão de princípio, também o Presidente da República tem legitimidade para o fazer. Mas para além disso, há estas questões de natureza política que têm a ver com a falta de legitimidade política de uma AR que está em vias de ser dissolvida. Já a questão da legitimidade política se poderia suscitar pelo facto de não constar dos programas eleitorais dos dois maiores partidos. Portanto há aqui uma questão de legitimidade democrática que aqui se podia pôr. A questão não foi discutida nas eleições anteriores e agora que provavelmente vai haver novas eleições onde poderia haver esta possibilidade de uma discussão, uma definição nos programas eleitorais de uma posição em relação a esta questão e que poderia ser suscitada na campanha eleitoral, com uma outra participação democrática e aprovação desta lei vem evitar isso. E parece, e é claro que é deliberado. Portanto, evitar que esta questão seja sujeita a um sufrágio eleitoral juntamente com outras.
São vários os argumentos que podem levar o Presidente da República a optar pelo veto político?
Eu acho que sim. Eu acho que sim. Há aqui vários argumentos que levariam a fazer. Se assim fosse a questão ficaria para uma próxima legislatura. A composição do Parlamento até pode ser semelhante a esta e até pode a questão voltar a ser aprovada, mas se isso acontecer será depois de uma campanha eleitoral, em que a questão é apresentada aos eleitores com posições claras. E depois eles votam de acordo com essas posições.
Contando que a lei seja aprovada no Parlamento, depois haverá espaço para a realização de um referendo sobre a eutanásia?
Se a lei for vetada fica sem efeito a proposta e, portanto, voltará a ser eventualmente discutida na próxima legislatura. Como é uma matéria em relação à qual os principais partidos nem têm uma posição unanime; os vários deputados têm posições divergentes, eu acho que o recurso ao referendo seria uma forma mais conforme aos princípios democráticos de decidir esta questão. Porque precisamente, se numa mesma lista de deputados há uns que votam a favor e outros votam contra; de facto é difícil desta forma tomar uma opção de acordo com a opinião dos eleitores. Se se fizer através do referendo, isso já será uma forma de exercício de democracia direta e portanto, um exercício mais fiel daquilo que é a vontade dos eleitores.
Não há problema legal de um Parlamento decidir uma lei e um próximo optar por um referendo?
Se a lei for vetada fica sem efeito o decreto que é aprovado na Assembleia da República e a lei não chega a entrar em vigor. É como se não tivesse sido aprovada. Numa situação destas fica sem efeito, e, portanto, é como se não tivesse sido aprovada a lei e terá de ser de novo apresentado um outro projeto de lei sujeito a discussão na AR e depois em relação a esse já se poderá colocar a questão do referendo.
Mas se a lei for aprovada e não for vetada pelo Presidente da República, depois não há espaço para um referendo mais à frente?
Há também a possibilidade de um referendo de iniciativa dos cidadãos, mas não me parece que nesta altura seja possível. Acho que os prazos para solicitar essa questão já estariam ultrapassados.