04 nov, 2021 - 17:11 • Filipe d'Avillez
O Parlamento debateu esta quinta-feira a nova versão da lei que pretende legalizar a eutanásia em Portugal.
Saiba o que disse cada um dos grupos parlamentares acerca da proposta.
Em defesa da lei falou Isabel Moreira, a deputada que se tornou a face desta causa, bem como de outras causas fraturantes na Assembleia da República. Isabel Moreira recordou que "o Tribunal Constitucional, indo além do que lhe fora requerido, fez questão de afastar as teses segundo as quais a eutanásia é inconstitucional por violação da vida humana. Nas palavras do acórdão, 'o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias'", referindo-se assim ao acórdão que chumbou a anterior versão da lei, por indeterminação de um artigo.
José Manuel Pureza tem sido também uma das principais figuras da eutanásia em Portugal e durante a sua intervenção disse que "o Bloco de Esquerda volta a vincar hoje que a adoção de uma lei que combine prudência com determinação, tolerância com rigor, que não obrigue ninguém a ir contra a sua vontade e que permita não forçar ninguém a ter uma morte que violente grosseiramente as exigências de dignidade que esse alguém se impôs ao longo de toda a sua vida, é um passo que devemos dar."
O Partido Comunista é o único da esquerda que tomou posição clara contra a legalização da eutanásia. Ainda assim, o deputado António Filipe não resistiu a criticar André Ventura, que tinha falado imediatamente antes dele, começando a sua intervenção com as palavras "voltando à seriedade que este debate impõe", e merecendo com isso muitos aplausos.
Defendendo uma morte "sempre assistida, mas nunca antecipada", António Filipe também criticou o facto de o Parlamento estar a tentar aprovar a eutanásia quando ainda há tanto por fazer no campo dos cuidados em fim de vida. "O que se discute é a questão de saber se um Estado que nega a muitos cidadãos os meios para viver dignamente lhes deve oferecer os meios legais para antecipar a morte. O Estado português não pode continuar a negar à maioria dos seus cidadãos os cuidados de saúde que necessitam, particularmente nos momentos de maior sofrimento. A criação de uma rede de cuidados paliativos com caráter universal tem de ser uma prioridade absoluta. Um país não deve criar instrumentos legais para ajudar a morrer quando não garante condições materiais para ajudar a viver."
Falando pelo PSD, partido que votou maioritariamente contra a lei no início do ano, mas que inclui deputados que votaram a favor, Adão Silva começou por criticar o facto de o Parlamento estar a discutir esta questão agora. "Durante mais de 230 dias, até 3 de novembro, nenhum grupo parlamentar apresentou qualquer proposta de alteração ao decreto. É agora, na 25.ª hora, no momento em que está à vista o final da atual legislatura, que são apresentadas várias propostas de alteração."
Adão Silva disse ainda que a pressa com que se agendou este debate, bem como a incerteza quanto à promulgação do diploma final, deviam ter levado à aplicação de prudência, sob pena de prejudicar a serenidade do debate e até a reputação do Parlamento.
Telmo Correia recordou que todos os deputados do CDS vão votar contra a proposta de lei e fez duras críticas à forma como esta foi agora apresentada nos dias finais da legislatura, recordando ainda que nenhum dos deputados favoráveis à eutanásia explicou exatamente como é que esta nova versão ultrapassa a inconstitucionalidade.
Para Telmo Correia tudo isto revela falta de bom-senso. "Não é uma questão de legalidade ou de processo jurídico. Admitamos que não é uma questão de legalidade formal. É acima de tudo uma questão de bom-senso, ou melhor dizendo, de falta dele. No fecho do Parlamento, a caminho de novas eleições, quando a geringonça já não serve para nada, formou-se uma outra geringonça para aprovar a eutanásia, em que já não está o PCP – o que demonstra que não é uma questão de esquerda e de direita – que se vê substituído pela Iniciativa Liberal. A única geringonça que aqui funciona fará neste fecho deste parlamento esta aprovação, de uma forma absolutamente determinista e maniqueísta."
O líder da bancada do CDS criticou ainda a forma como a nova versão do texto não foi alvo de análise por nenhuma entidade especialista. "Decidiram e pronto. Não interessa mais nada. Agiram sempre assim. Pouco tempo depois de um Parlamento anterior ter chumbado esta matéria, sem que os programas eleitorais se referissem a ela, avançaram com o processo da eutanásia. Recusaram o referendo porque não quiseram que o povo português pudesse analisar e se pudesse pronunciar sobre esta matéria. Tiveram um chumbo do Tribunal Constitucional. Ninguém soube do texto que cozinharam. O Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida não soube, as ordens profissionais que sempre foram contra e que estão ligadas a estas matérias designadamente os médicos, os enfermeiros e os psicólogos, não souberam do vosso texto. Os próprios deputados não conheceram o texto. Porque não interessa nada disso. O que interessa é decidir à pressa, o que interessa é fechar esta matéria."
O debate, que até então tinha sido relativamente sereno, aqueceu quando Isabel Moreira voltou a pedir a palavra e disse que sente medo físico, enquanto mulher, da direita em que se tornaram o PSD e o CDS, recordando que foi também no último dia da legislatura em que os dois estavam no Governo que se aprovaram leis para regular o direito ao aborto e que, segundo a deputada, "fizeram em pó" uma lei com base referendária.
O comentário mereceu críticas quer do PSD, com Adão Silva a pedir a Isabel Moreira "menos arrogância" e do CDS, com Telmo Correia a dizer que o que desprestigia o Parlamento é o radicalismo da deputada socialista.
A Iniciativa Liberal foi o único partido do espetro da direita a propor um projeto de lei para a despenalização da eutanásia. João Cotrim Figueiredo colocou a discussão no âmbito da liberdade pessoal. "Não é fácil confrontarmo-nos com a nossa finitude, não é fácil falar sobre o fim. Mas a decisão do fim deve ser nossa, porque a vida, do início até esse fim, é aquilo em que acreditamos e aquilo que fazemos de forma livre, informada e consciente. As decisões sobre para onde ir, com quem ir, são nossas. As decisões sobre as lutas que travamos e sobre os desfechos que escolhemos, são nossas. Só nós poderemos saber e por isso até ao último momento ninguém pode, ninguém devia poder, decidir a nossa vida por nós."
André Ventura classificou como "vergonhoso" o facto de se estar a discutir o assunto da eutanásia numa altura em que o Parlamento está "prestes a mudar de maioria" e acusou a esquerda e a extrema-esquerda de estarem com medo das eleições. O deputado jurou ainda que o Chega tentará reverter esta lei, caso seja aprovada e promulgada, numa próxima legislatura e perguntou onde estão os cuidados paliativos prometidos pelo Governo.
"Durante a pandemia deixámos tanta gente para trás. Onde estão as 800 camas de cuidados paliativos que tinham prometido? Onde está o reforço de cuidados médicos de fim de vida que tinham prometido e que António Costa tinha prometido em 2015 e 2016? Nada disso foi feito, e o que querem deixar como memória desta legislatura é a morte assistida aprovada neste parlamento. Um sinal talvez claro e breve do que foi esta legislatura socialista."
Este é um dos diplomas que os deputados consideraram prioritários para debater e votar em vésperas de uma dissolução da Assembleia da República, que deverá ser decretada esta quinta-feira à noite pelo Presidente da República. Os partidos à direita criticaram o agendamento da lei para estes dias, mas algumas vozes da esquerda também se queixaram, entre os quais José Luís Carneiro, o secretário-geral adjunto do PS.
Uma primeira versão da lei da eutanásia foi aprovada no início do ano. O Presidente da República optou por enviar a lei para o Tribunal Constitucional, que em março deste ano chumbou o documento por indefinição do termo "lesão grave e definitiva".
Desde então os proponentes estiveram a trabalhar numa nova versão do texto. A principal alteração foi a inclusão de um artigo com definições, incluindo para esse termo considerado inconstitucional pelos juízes. A nova versão já foi criticada por um constitucionalista como sendo ainda pior que a original.
Esta nova versão da lei não foi sujeitada a pareceres de qualquer instituição, sendo que a versão anterior tinha merecido pareceres negativos de quase todas as organizações chamadas a intervir, incluindo o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Enfermeiros.
Caso os deputados aprovem na sexta-feira a lei, como se espera, esta será enviada de novo para Belém e caberá ao Presidente da República decidir se promulga, se veta ou se envia novamente para o Tribunal Constitucional.