20 dez, 2021 - 13:31 • Liliana Carona
“Tem aqui a primeira menina, a Arlete”. Surge ao fundo do corredor, de vestido preto às bolinhas brancas, sorridente com os olhos. Tira a máscara, mas logo volta a colocar. É encaminhada para uma sala de espera, onde nos aguarda. “Tentamos que ninguém ande lá por cima, para os quartos. As visitas são cá em baixo nesta sala de espera”, aponta Ana Oliveira, diretora técnica do lar que abriu em 2012 em Mangualde.
O lar Padre António Pinto Lobinho tem 41 idosos na valência de lar e não ultrapassa uma dúzia os que vão a casa no Natal. "A maioria dos idosos institucionalizados passa connosco, mas sei que pelo menos 10 ou 12 vão passar junto das famílias", diz Ana Oliveira, ao mesmo tempo que nos pede o teste Covid negativo e nos desinfeta o calçado e as mãos.
Arlete Freitas, 78 anos, costureira toda a vida, é uma das poucas utentes que vai passar o Natal fora do lar, a casa do irmão. Natural do concelho de Fornos de Algodres, está institucionalizada desde outubro.
“Estava sozinha, o meu marido faleceu, sou diabética, sofria do coração e algum dia tinha de vir para aqui”, diz, salientando que o Natal vai ser passado junto dos entes queridos. “Tenho o meu irmão e a minha cunhada e vou passar o Natal com eles. Mas não vão para casa do filho, porque não querem muita gente junta, então seremos só nós os três. Isto agora não está para ajuntamentos. Já levámos as três vacinas”, apressa-se a revelar, concluindo: “para o Natal só queria saúde e que este ‘bicho’ acabasse”.
Mas o ‘bicho’ continua a alterar as rotinas. Fernanda Rei, 97 anos, enfermeira reformada, desabafa o peso de quase dois anos de pandemia.
“Tem sido muito complicado. O primeiro ano foi de revolta, de raiva, não compreensão, informação e contra informação. Passei muito mal. Aqui foram de um rigor excessivo, a meu ver”, observa Fernanda, explicando que por motivos de saúde tinha de sair várias vezes para ir ao médico. “E, ao entrar, tinha de entrar pela garagem, mudar de sapatos, ir a correr para a casa de banho do rés do chão, onde me tiravam a roupa, banho, outra vez roupa lavada, ia a correr para o meu quarto em quarentena durante duas semanas".
"Devo ter feito oito quarentenas durante esta pandemia”, diz em tom carregado. Fernanda lacrimeja. “Não lhe digo tudo, porque não quero ir mais longe, mas foi muito doloroso. Não me lembro de na minha vida ter ido tão abaixo moralmente; foi o desespero completo. Depois, as coisas foram evoluindo, mudando, mas agora é o medo: não sabemos como isto vai evoluir. A vacina não protege como esperávamos. Isolaram-nos completamente, cada um come no seu quarto, regras muito rigorosas, mas eficazes”, admite Fernanda Rei, natural de Lisboa, a viver no lar há nove anos, todos eles com o Natal ali passado.
“O Natal vai ser passado aqui. A minha família vive toda em Lisboa, a filha no Luxemburgo, a neta na Bélgica, o neto em Espanha. Em outubro, estivemos reunidos no Algarve, mas quase nunca saí daqui, A família é difícil reunir-se”, conta Fernanda Rei, enaltecendo o trabalho das funcionárias do lar.
“Ornamentam a casa com muito boa vontade, come-se bacalhau, às vezes vinham grupos de animação. Mas já o ano passado não vieram – a pandemia veio mudar a vida das pessoas, tirou-me anos de vida”, assume Fernanda Rei, para quem o isolamento é a consequência trágica da pandemia.
“Eu só falo com duas pessoas, porque somos vizinhas de quartos. E estamos nisto há quase dois anos. Entraram pessoas que não conheço. São pequenos detalhes, mas só quem os vive dá valor. Nunca o ditado foi tão real: do Convento só sabe quem lá está dentro”, descreve. E prendas de Natal? “Um miminho cura mais que um comprimido”, sugere Fernanda.
Fernanda, tal como há nove anos desde que está institucionalizada, passa o Natal no lar de Mangualde. Já a professora primária Maria da Conceição, 89 anos, será o segundo Natal longe de Barcelos. Seria muita gente junta.
“A família está em Barcelos e é muita gente, e também tenho medo. Assim fico aqui. Estou resguardada. Cada um está no seu aposento”, relata Maria da Conceição que elogia a forma como o lar de Mangualde organiza a ceia natalícia.
“É uma ceia boa, fazem as rabanadas, o bolo rei, as filhoses, há champanhe, temos tudo”, descreve, sem deixar de lamentar o contexto pandémico. “É triste, sabe Deus como. Temos de estar resguardados, mas tivemos muito tempo que nem do quarto saíamos”.
Algum desejo para o Natal? “Feliz Natal para todo o mundo. Precisamos de um Natal feliz para todo o mundo. Há-de ser como Deus quiser”. Devido a uma queda, Maria da Conceição tem dificuldades em caminhar sozinha para ir ao cabeleireiro, mas é ali mesmo no lar que trata de si. “Cortam-me o cabelo aqui, fazem a tinta e pintam-mo”, sorri ao espelho de um salão existente no espaço.
Por outros motivos, o antigo empregado de escritório Firmino Abrantes, 78 anos, passa o Natal no lar. Natural de Mangualde e utente do lar desde que inaugurou (em 2012) confessa que não tem para onde ir, mesmo que quisesse sair no Natal.
“Não tenho família. Os meus pais faleceram, o meu irmão também, sou divorciado e não tive filhos. Estou sozinho aqui com os utentes. A solidão é tremenda”, afirma, destacando o que gostava de receber no Natal: “Gostava de receber o subsídio de combatente de ultramar e ainda não recebi nada”, desvenda Firmino.
A professora aposentada Maria Júlia, 83 anos, prefere não fazer "grandes planos" para o Natal. Natural de Mangualde, foi das primeiras utentes deste lar de Mangualde.
Onde vai passar o Natal? “No quarto, sozinha, com Deus e Nossa Senhora e as fotografias dos meus todos à volta. Já está assim, combinado”, refere. E a família? “No ano passado, veio cá o meu filho e esperei que ele agora viesse e não veio. Paciência, tive de me conformar. Eu agora estou sozinha, vou passar o Natal no quarto, que é um bom quarto, não me falta o essencial. Já me acomodei à solidão, que também tem as suas qualidades. Ninguém me aborrece. Deus está connosco”, sorri, ao mesmo tempo que aponta o dedo à pandemia.
“E depois, de cada vez que tenho de sair, tenho de fazer mais ‘esfurancadelas’ no nariz e fico muito sensível. Temos de aceitar as vicissitudes de um vírus terrível”, declara Maria Júlia, que é conhecida por ser uma boa contadora de anedotas. “Conto às colegas mais próximas, companheiras de vida”.