23 dez, 2021 - 12:58 • Inês Rocha
Com o número de casos de Covid-19 a aumentar nas vésperas das festas, são cada vez mais os portugueses obrigados a ficar em isolamento, quer por infeção quer por contacto com pessoas infetadas.
Na perspetiva de um segundo Natal atípico, Eduardo Carqueja, presidente da Delegação Regional do Norte da Ordem dos Psicólogos, lembra que há um novo fator nos isolamentos deste ano, que no ano passado não existia: expectativas defraudadas. Em 2020, “sabíamos que ainda haveria vacinas, que iríamos vacinar-nos e portanto havia a expectativa de que em 2021 o Natal já seria totalmente diferente”, recorda.
“Isto cria também nas pessoas uma expectativa perfeitamente lícita perante o que era dito que era expectável”, explica o psicólogo, que é também diretor do serviço de Psicologia do Hospital de São João, no Porto.
“Hoje o que é que nós temos? Temos efetivamente pessoas, na maior parte dos casos, totalmente vacinadas ou pelo menos com as duas doses, temos o início da vacinação dos mais pequenos, temos aqui algo que aparentemente daria proteção”.
"As pessoas ficam provavelmente mais frustradas e até a questionar a eficácia das vacinas, de medidas de proteção, isto cria aqui uma instabilidade nas pessoas naturalmente", explica o especialista.
Tal como no ano passado, quando a Ordem dos Psicólogos divulgou uma lista de dicas sobre como ultrapassar um Natal com distanciamento, Eduardo Carqueja lembra que o mais importante continua a ser “assumirmos a realidade tal qual ela é”.
“É fundamental protegermo-nos, é fundamental estarmos vacinados, é fundamental fazemos a testagem maciça e é possível fazer isto”, lembra o psicólogo, que sublinha que isto “não é sermos apáticos ou conformistas, é sermos totalmente realistas perante a existência que temos”.
"É importante que haja um diálogo genuíno e aberto com as crianças sobre o que está a acontecer"
Carqueja lembra que, apesar de tudo, este ano é diferente de 2020, porque é possível, com auto-testagem e cumprindo todas as recomendações da DGS, as pessoas estarem juntas, ainda que em pequenos grupos.
“O ano passado era muito mais violento e muito mais agressivo, portanto há aqui uma nuance, dentro de um quadro que não é o desejável, há um quadro que é mais favorável”.
Questionado sobre quais as consequências de um novo isolamento numa época importante para as famílias, Eduardo Carqueja usa um termo forte: “desespero”.
O psicólogo dá o exemplo das pessoas idosas, que muitas vezes se veem “encurraladas”.
"Parece que cada dia que passa é menos um dia que eu vou viver da forma que eu gostaria, sabendo que tenho pouco tempo de vida, naquela expectativa de se aproximar a morte. Essa aproximação, decorrente da idade, cria nas pessoas uma angústia grande e um desconforto e muitas situações de raiva.”
O que fazer para ajudar, nestas situações? “Temos que validar isto às pessoas, numa postura de compreensão, mas também, ao mesmo tempo, de acolhimento de uma realidade de que também não podemos fugir”.
Em muitos dos casos, os idosos aceitam até melhor esta frustração do que os mais novos, segundo o psicólogo. “É muito interessante que as pessoas mais velhas, mais idosas, com todo o desconforto, têm até uma aceitação mais plena das condicionantes”, considera, lembrando também a importância da dimensão cultural, de uma ideia de que a vida é assim e têm de aceitar, que por vezes ajuda a minorar um pouco o sofrimento.
Sobre a forma de lidar com os mais novos e com outro Natal atípico, o psicólogo lembra que “é importante que haja um diálogo genuíno, um diálogo aberto sobre o que está a acontecer, sobre o que nós gostamos e aquilo que é possível ter”.
Carqueja dá até exemplos do dia-a-dia que podem ajudar à compreensão. “Podemos dizer, olha, o papá gostaria muito de ter um carro de determinada marca que custa muito dinheiro, mas os recursos económicos não permitem que isso aconteça. Essa simbologia pode muito bem servir também para perceberem a diferença entre o que nós queremos que aconteça e efetivamente aquilo que é possível acontecer”, explica.
O especialista sublinha a capacidade de adaptação e de interação das crianças. No contexto da vacinação dos mais novos, “temos ouvido discursos de crianças que são discursos fantásticos, de uma compreensão e até de uma adultez no próprio discurso, dizendo da importância da vacinação”.
O psicólogo alerta: “muitas vezes são os adultos que complicam porque querem esconder, ou intensificam muito a vivência, ou fazem de conta que não está acontecer nada”.
O que é necessário é exatamente o contrário: “esta é uma altura de discursos abertos, discursos genuínos com linguagem adequada a cada fase de desenvolvimento das crianças, de falarem do que está acontecer de acordo com a fase de desenvolvimento em que estão”.
Eduardo Carqueja pede às famílias que não se esqueçam das ferramentas tecnológicas, de conversa à distância, que ajudam a que a partilha aconteça, ainda que não substituam o contacto presencial.
“Fazerem isto até durante o jantar, conversarem, o que é que estão a comer, e dizerem uns aos outros: 'que bom era se estivesses aqui'. Infelizmente não é possível, mas pelo menos estamo-nos a ver, pelo menos estarmos a falar.”
Num artigo no jornal Público, esta quinta-feira, i(...)
Esta, para o psicólogo, “é a essência fundamental do Natal”, que importa não deixar perder. “Eu posso estar distante mas não deixo de amar a outra pessoa. Eu gostaria que ela estivesse aqui, claro que sim, mas se eu fico reduzido só a esta dimensão presencial, então o meu amor é só significado na presença da outra pessoa, o que não é verdade”.
De qualquer forma, Carqueja compreende que a tecnologia, apesar de poder atenuar, “não retira todo o sofrimento que as pessoas carregam porque não estão fisicamente com as pessoas” e que a dimensão mais material do Natal, da troca de prendas, “elabora aqui uma ausência, não é só não estar à mesa, é depois abertura das prendas que já não se faz”.
Neste caso, é importante as famílias encontrarem alternativas que substituam a troca de prendas física, adaptando ou criando até novas tradições.
Questionado sobre o nível de procura do serviço de psicologia do São João nesta fase, quase dois anos depois do início da pandemia, Eduardo Carqueja sublinha que o modelo atual de acessibilidade às consultas de psicologia deixa ainda muito a desejar. No entanto, a procura já é intensa e prevê-se que aumente muito nos próximos tempos.
Atualmente, o serviço de psicologia do Hospital de São João tem uma lista de espera de 1.300 pessoas, que espera poder receber no prazo de três meses. A cada mês, o serviço recebe cerca de 450 a 500 pedidos, cerca de 25% acima dos números que tinham em 2019.
Estes pedidos vêm apenas de outros serviços do hospital, que indicam os doentes para a psicologia. "Se fosse um serviço direto", de atendimento à população, "seguramente seriam muitos mais os pedidos".
No entanto, Carqueja lembra que a população ainda está, a nível psicológico "muito reativa" neste mecanismo de defesa da agressividade que estamos a viver".
"Este contínuo de agressão, quando parar, também vai deixar sequelas muito intensas", considera.
"As pessoas vão repousar, vão respirar e ao respirar vão sentir as sequelas psicológicas que estão a viver", prevê.