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Entrevista a Rita Valadas

“Crise social ainda não acabou. Não fazemos ideia do que vai acontecer”

11 mar, 2022 - 08:32 • Ângela Roque

Presidente da Cáritas admite que a guerra na Ucrânia veio complicar as previsões económicas mais pessimistas e aumentar a incerteza. Mas confia na contribuição dos portugueses no peditório de rua que vai ser feito a partir de domingo, durante a Semana Nacional da Cáritas. Nesta entrevista deixa o apelo: “se puderem, apoiem-nos”.

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Entrevista a Rita Valadas, presidente da Cáritas portuguesa

A Semana Nacional da Cáritas vai decorrer de 13 a 20 de março, e volta a realizar-se o peditório público de rua na maioria das dioceses. É uma das principais fontes de financiamento da rede Cáritas, mas no ano passado, por causa da pandemia, a recolha fez-se apenas online. Este ano pode continuar a contribuir-se dessa forma, mas para a instituição é importante voltar à rua e contactar com as pessoas, diz a presidente da Cáritas portuguesa, Rita Valadas.

Em entrevista à Renascença, a responsável apela à ajuda dos portugueses, ainda mais quando se prevê que a guerra na Ucrânia irá agravar a situação de muitas famílias que já passavam dificuldades. “A crise social ainda não acabou”, alerta.

Fala, ainda, da campanha de apoio à Ucrânia, que está a decorrer até dia 30, e critica a falta de coordenação no acolhimento aos ucranianos em Portugal.

Aproxima-se mais uma Semana Nacional da Cáritas em que vai ser retomado o peditório público, depois de dois anos de interrupção, por causa da pandemia. É um momento importante para a instituição, em termos de recolha de donativos?

É importantíssimo, porque a Cáritas na sua missão mais fundacional é uma instituição que vive de donativos e de projetos com parcerias, por isso esta semana é muito importante para fazer chegar quem precisa e quem quer dar. E usamos esta semana, porque no ano inteiro estamos a fazer pelo território, não estamos em condições de estar a pensar nestas questões mais materiais, mas que são indispensáveis.

E isto também implica toda uma logística.

Sim, uma logística grande, muitos voluntários que se juntam a nós. É uma ação que é importante para além da questão financeira, porque há muitas pessoas que se identificam com esta ação e gostam de participar nela.

Reaproxima as pessoas da Cáritas?

E da vida, e do próximo. E então nestes dois anos em que vivemos todos fechados, conseguir fazer uma aproximação com propósito é muito importante.

E depois destes dois anos de interrupção, estão a ter muitos voluntários para fazer o peditório?

Ainda não tenho a noção de todos os voluntários que vamos ter. Há algumas cáritas diocesanas que não vão conseguir fazer o peditório na rua, presencial, depende muito das zonas em que estão. Neste momento creio que só ficam seis dioceses de fora, todas as outras vão fazer peditório na rua. E vamos manter o grande benefício que percebemos que havia no peditório online, vai acontecer na mesma.

As pessoas já se habituaram a essas novas formas de pagamento e contribuição?

E reveem-se nisso. De certa forma dá segurança às pessoas, porque isto de depositar uma moeda que seja numa conta bancária significa que há um garante de que vai ser utilizada. Até porque, como em todos os outros anos, a Cáritas dará conta disso, a informação será pública. As nossas campanhas são todas antecedidas de um pedido ao Ministério da Administração Interna, a quem daremos contas no fim do peditório.

Nos dois anos anteriores houve uma grande quebra de donativos?

No primeiro ano foi muito difícil, porque em 2020 não se fez nada, mesmo. Em 2021 fez-se a experiência de fazer o peditório online e, face às contingências, considero que foi um enorme sucesso. Primeiro porque aliado ao peditório online, percebemos que era bom comunicar Cáritas, dar a conhecer o que faz, e a Cáritas tem tesouros diferentes em muitas zonas do país, as pessoas não têm consciência! E isso atingiu quer as pessoas, quer as empresas. Tive empresas que se aproximaram de nós dizendo: “este ano quero fazer responsabilidade social com a Cáritas, não conhecia o que vocês faziam e alinho-me com aquilo para que pretendem o apoio”.

A pandemia veio mostrar mais a vossa ação no terreno?

A responsabilidade foi da pandemia, mas a intervenção foi nossa. Nós tínhamos culpa de não comunicar, na perspetiva de “não saiba a mão direita o que faz a esquerda”, achamos que não devemos dar publicidade àquilo que fazemos, mas na verdade, se não dissermos às pessoas elas não podem saber aquilo que estamos a fazer, e também não sabem, numa situação de dificuldade, a quem hão de recorrer. Portanto, isto tem um duplo sentido, para quem precisa e para quem dá.

Esta Semana da Cáritas vai decorrer de 13 a 20 de março, em plena Quaresma.

O lema da Semana, este ano, é o mesmo do ano passado: “Cáritas, o amor que transforma”. Achámos que tinha muito significado, revemo-nos muito nesse lema, que desdobrado encontra dons, tesouros, capacidades, tudo aquilo que muitas vezes está escondido, e usamos este tempo para o mostrar.

Outra forma de ajudar nesta Semana Nacional da Cáritas é participar no concerto solidário. Está previsto para quando?

Para sábado, dia 12. É um concerto muito interessante porque partiu de um desafio: uma jovem que participou num concurso de música dinamizou um grupo de outros jovens neste propósito de fazer um concerto alinhado com a Cáritas. Essa dinâmica neste ano especial, que é o Ano Europeu da Juventude, é especialmente interessante.

Tendemos a achar que os voluntários são pessoas mais velhas, mas estas pessoas desafiadas no seu território são preciosas, e este grupo de jovens disponibilizou-se a fazer um concerto com duas missões: uma que é chamar a atenção para a ação da Cáritas e o que se vai passar durante a Semana - porque é no dia que antecede a Semana -, e outra é demonstrar que os jovens estão presentes e querem estar, às vezes não estão porque não os sabemos chamar. Foi a lição que eles nos deram a nós, e não nós a eles. Nós só agarrámos no fósforo, eles agarram na caixa e fizeram tudo.

O concerto vai decorrer onde?

Em Lisboa, no Capitólio, às 16h00 de dia 12. Se forem ao site da Cáritas (caritas.pt) está lá toda a informação sobre a Semana, os eventos e a compra dos bilhetes.

Está, entretanto, a decorrer a campanha de apoio à Ucrânia, que a Cáritas lançou, com o apoio da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Os portugueses estão a corresponder?

Estão, porque é visível em todos os órgãos de comunicação esta agressão dentro da Europa. É uma coisa para que ninguém estava preparado. Ter uma guerra nos nossos vizinhos e pensar que pode chegar até nós, move muita gente.

Pensar que saem mães com crianças e os pais ficam, que há famílias separadas - inclusivé entre os dois países há famílias que estão completamente destroçadas neste momento - convocou toda a gente, e convocou também para a nossa campanha, cujo nome é 'Cáritas ajuda Ucrânia', mas na verdade o objetivo são os ucranianos e o seu movimento para os sítios de paz e esperança.

É muito visível o que se passa nas fronteiras, mas as pessoas não vão ficar ali, vão encaminhar-se para o resto da Europa, provavelmente para países onde têm referências - ou família, ou já lá estiveram - e todos os países vão receber estas pessoas que precisam de cuidados e de apoio..

"Há um coração imenso, mas está cada pessoa a trabalhar para seu lado [no acolhimento aos refugiados]"

Este apoio de emergência que a Cáritas está a recolher destina-se a apoiar as Cáritas da Ucrânia e dos países à volta, que estão a acolher as pessoas que fogem da guerra. As necessidades continuam a ser as mesmas de quando receberam o pedido de ajuda?

Esta nossa campanha vai concorrer para todas as campanhas que abriram em termos internacionais desses países limítrofes. O primeiro apelo de emergência foi feito pela Cáritas Internacionalis, especial para a Ucrânia, que ainda está com algumas dificuldades. Neste momento não é a situação mais gritante, porque eles estavam muito preparados, tinham as condições de emergência nos 17 centros cáritas que têm no país, mas os países limítrofes não estavam à espera desta situação.

Nomeadamente a Polónia...

A Polónia, que fez uma apelo de emergência que tem vindo a ser muito bem respondido; a Moldávia, a quem vamos dar um apoio desta nossa campanha; para todos os que equacionarem a necessidade de apoio, e depois também para apoiar a rede nacional, por causa dos que cá vierem ter e precisarem de apoio.

E que já começaram a chegar. Como é que a Cáritas se vai envolver nesse acolhimento?

Eu estou um bocadinho preocupada com essa situação. O que fizemos, e temos em cima da mesa, é a identificação dos locais da nossa rede que podem receber pessoas nesta situação, de emergência ou de inserção.

Temos de ver qual é a perspetiva que as pessoas trazem, se não querem voltar - ou, pelo menos, voltar tão cedo, e só querem cá estar na esperança de que a guerra dure pouco -, ou querem mesmo integrar-se, e nesse caso temos um conjunto de coisas que têm a ver com escolas, emprego, etc.

Temos algum movimento - não de instituições, mas de casas de pessoas que estão a ser disponibilizadas - que vejo ainda com necessidade de ser enquadrado. O Estado terá de nos dizer como é que essas situações são enquadradas, para não corrermos riscos e tudo ser claro e identificado. E também fizemos a identificação dos postos de trabalho da nossa rede que podem ser disponibilizados para as pessoas que chegam.

Mas está preocupada porquê?

Porque não sinto que haja coordenação. Há um coração imenso, mas está cada pessoa a trabalhar para seu lado, e neste momento acho que precisamos de fazer união e síntese.

Mesmo a nível das instituições? Porque há várias organizações…

Todos estamos a trabalhar para o mesmo. O Estado já disse que vai facilitar a legalização. Ouvi a senhora ministra dizer que as pessoas irão ser contactadas, mas quem está a trazer e quem recebe não sabe ainda como é que isto vai ser, como é que é a legalização, quanto tempo demora. Quem vem sozinho não sabe para onde vai, as pessoas podem chegar e não ser acolhidas, porque ninguém sabe que eles chegaram. Os que têm vindo têm famílias e situações de referência, o que facilita, mas os outros não sabemos qual é o caminho. Era bom que houvesse uma orientação geral que dissesse 'isto vai ser assim, quem precisa de alojamento vai para ali', alguém que responda.

E essa orientação devia ser dada por quem, pelo Governo? Pelas entidades que a partir do governo trabalham nesta área?

Acho que a iniciativa tinha de partir do Governo, que sabe exatamente com quem conta, e a Cáritas está absolutamente disponível para o que for necessário, mas era bom que estivéssemos todos sentados à mesma mesa, não fazer as pessoas correr em incerteza. Porque se as pessoas chegam na situação em que vêm e sentem que não há uma resposta para lhes dar, mesmo que tenham um teto, o primeiro dia, a primeira semana se calhar corre bem, depois começam a sentir-se inseguras. E se nós temos meios postos à disposição, então que isso seja feito claramente e que as pessoas saibam onde acorrer.

É um apelo que deixa?

É um apelo que deixo. Diretamente ao Governo, porque acho que é o Governo que tem de fazer.

Esta guerra veio baralhar ainda mais as previsões económicas e a situação que para muitas famílias já se tinha agravado com a pandemia. O aumento dos combustíveis também trará certamente o agravamento do preço da maioria dos bens de consumo. Os próximos tempos vão ser de mais dificuldade para a Cáritas?

Vão ser de mais dificuldade para as pessoas, e por isso de mais dificuldade para a Cáritas ajudar. Daí a importância desta Semana, é a nossa oportunidade de, não só tentar clarificar o que se passa, como tentar organizar a nossa ação.

Criámos um programa por causa da pandemia, e a pandemia ainda não passou, as suas consequências estão longe de passar.

A crise social não acabou, e essas pessoas estão ao nosso cuidado. Temos entre 116 mil e 120 mil atendimentos feitos em 2021, e este é um número muito por baixo, porque o registo não é uma prática muito assídua de quem acolhe na primeira linha as pessoas.

"A crise social não acabou. Temos entre 116 mil e 120 mil atendimentos feitos em 2021, e este é um número muito por baixo"

Mas esses atendimentos já revelam um aumento, mesmo sendo um número por baixo?

Sim, houve um aumento no atendimento geral, porque acresce a isto as famílias que foram apoiadas pelo 'Vamos inverter a curva da pobreza', e que tiveram e têm problemas de renda casa, água, luz, e isso não vai melhorar este ano. Essas famílias, a menos que resolvam a sua situação de emprego, vão estar na mesma situação, e a estas vêm-se acrescentar algumas famílias ucranianas que serão acolhidas da mesma maneira na nossa rede.

Nós já atendemos muitos estrangeiros com os nossos programas, e para além do que o governo definir para a situação destas pessoas, o apoio social da Cáritas será feito da mesma maneira, na nossa rede paroquial e diocesana, por isso os programas que temos disponíveis não vão chegar.

Vamos avaliar o programa 'Vamos inverter a curva da pobreza' com dados a março - e isso já estava previsto no nosso plano de atividades - para saber quais são as condições que temos para continuar a apoiar, e o que é que precisamos de fazer. Agora, com toda esta complexidade que nos chega, sabemos que vamos ter muito mais famílias que vão precisar de muitas coisas: na primeira fase vão ter problemas de língua, temos de integrar as crianças, de encontrar um espaço digno para eles viverem. E os nossos também já têm problemas em pagar essas despesas, e essas despesas vão subir…

As despesas correntes, de renda, água, luz...

E todos os bens de consumo, porque sabemos que isso arrasta tudo o resto.

Nós não fazemos ideia do que vai acontecer em termos do aumento do custo de vida. Já prevíamos um enorme aumento, antes da guerra, e agora com esta situação, os cortes das energias e esse aumento brutal (dos combustíveis), a Cáritas tem mesmo de pensar como é que vai fazer este trabalho, claramente dependendo dos donativos que nos chegarem esta Semana, que é muito importante.

Em 2021 falou-se muito da chegada da 'bazuca europeia'. Mas, depois houve eleições antecipadas, e o novo Governo ainda não tomou posse. Este atraso também dificulta a própria ajuda que pode ser dada às instituições e, através delas, às pessoas?

Provavelmente, isso dependerá também da iniciativa do governo que tomar posse. Mas, como sabe, sempre fui um bocadinho desconfiada em relação à 'bazuca', porque acho que não se resolvem os problemas atirando dinheiro para cima deles, é preciso que o dinheiro tenha uma efetividade, um objetivo e seja consequente. Nós precisamos muito de algumas medidas estruturantes, e temos de saber usar bem este dinheiro. Não estamos em condições de desprezar esta situação, mas também não nos podemos esquecer que em grande parte este dinheiro é um empréstimo, temos de ponderar em termos de custo/benefício e investi-lo só naquilo que tem repercussões e se multiplica para bem e para proteger e cuidar.

Que apelo deixa aos portugueses tendo como horizonte esta Semana da Cáritas e a campanha específica de ajuda à Ucrânia?

O apelo que eu deixo parte de um compromisso: a Cáritas não vai sair do território, do terreno, como nunca saiu, mesmo em situação da maior crise, e dará boa nota daquilo que estamos a planear, daquilo que achamos que é preciso e que são as ações que consideramos mais importantes. Também daremos boa nota dos nossos 'tesouros' e daquilo que é ainda desconhecido da rede, e por isso o apelo é: sigam-nos, acompanhem-nos e, se puderem, apoiem-nos

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