16 mar, 2022 - 06:57 • Ângela Roque
Em menos de um mês a guerra na Ucrânia fez disparar o preço dos combustíveis que, num efeito ‘bola de neve’, está a causar a subida generalizada dos bens de consumo, a começar pelo mais básicos.
Em entrevista à Renascença, a presidente do Banco Alimentar contra a Fome, Isabel Jonet, diz que ainda não sentiram falhas no abastecimento. Como economista, antecipa “meses difíceis”, com os preços em alta a fazerem diluir rapidamente a recente subida do salário mínimo.
Isabel Jonet diz que as dificuldades serão maiores para quem já hoje precisa de apoio, mas também para as instituições sociais que são o suporte de muitas famílias, porque vai haver mais procura e vão ter mais despesas. E deixa um conselho ao novo Governo que vier a tomar a posse: que ponha sempre as pessoas no centro das decisões.
A guerra na Ucrânia veio agravar as previsões que já eram pessimistas relativamente à subida do custo de vida. O que é que a escalada do preço dos combustíveis, e dos bens de consumo em geral, significa para o Banco Alimentar contra a Fome? Há razões para alarme?
Temos de ser muito realistas e encarar que qualquer acréscimo do custo de vida para as famílias mais carenciadas é muito angustiante. As pessoas vivem já com os orçamentos completamente esticados e, muitas vezes, não têm margem para qualquer tipo de folga.
Estamos a falar de um acréscimo dos bens mais básicos de todos. A Ucrânia e a Rússia são o celeiro da Europa, e se aumentar o preço do trigo e do milho - para além do preço da energia, que já sabíamos que ia acontecer - tudo isso se vai repercutir e ter impacto seguro e certo na população em geral, mas esse impacto é muito maior na população que vive com orçamentos muito reduzidos e não tem qualquer elasticidade, porque tem de gerir todo o dinheiro que tem entre a habitação e a alimentação.
E vamos ter também uma pressão pelo lado do preço da habitação, vai haver mais procura de casas para arrendar, até com os refugiados que estamos a acolher, que vão ter de ser inseridos corretamente no mercado de trabalho e precisar de casas para morar. Há aqui uma pressão por vários lados, e em simultâneo.
"Vai haver uma grande pressão, isso vai fazer com que aumentem os pedidos, e temos de estar cá para poder responder a todos"
E a exigir várias respostas… A recente subida do salário mínimo nacional pode diluir-se rapidamente?
Sim, porque se prevê a inflação como há anos que não havia, e porque são todos os preços que se antecipa que vão aumentar: seja o preço da carne, porque o gado é alimentado com cereais, seja o preço da energia, seja o preço dos combustíveis, seja até o preço dos bens mais básicos de todos.
Se pensar, por exemplo, que o trigo faz parte das farinhas, do pão, das massas, de tudo, vai haver certamente um aumento dos bens básicos, e isto tem consequências maiores para as pessoas que já precisam de ajuda e que tinham, mais ou menos, as suas finanças controladas, dentro daquilo que é possível ter. E vai causar uma grande pressão no setor social, que vai uma vez mais ser chamado a intervir e prestar apoios, quando sabemos que ainda por cima temos um estado de emergência, estamos a acolher pessoas que vão ter de ser ajudadas por este setor social. Vai haver uma grande pressão, isso vai fazer com que aumentem os pedidos, e temos de estar cá para poder responder a todos estes pedidos.
Se juntarmos à guerra a pandemia, que ainda não acabou, e até a seca, podemos estar, de facto, à beira de uma situação de emergência alimentar em Portugal?
Certamente que vai haver necessidades de maiores apoios alimentares. Vai haver maior procura e as próprias instituições de solidariedade social vão ter uma pressão quando servem as refeições confecionadas, porque não prevejo rapidamente a revisão dos acordos com a Segurança Social, nos lares, nas creches e nas instituições que servem refeições, e as próprias instituições vão ter que enfrentar estes custos mais elevados.
Foi o custo do acréscimo do salário mínimo - muitas vezes as instituições têm colaboradores com os salários mínimos -, e agora o acréscimo dos produtos. Isto nos próximos tempos não vai ser fácil para o setor social, e há aqui muito trabalho a fazer. Ainda por cima, o Governo ainda é de gestão, ainda não há um novo Governo nomeado. Há aqui muitas variáveis que com dificuldade se pode fazer uma previsão para os próximos tempos.
O BA ajuda milhares de portugueses através de cerca de 2.500 instituições particulares de solidariedade social (IPSS). Desde que a guerra começou têm recebido mais pedidos de ajuda?
Temos recebido pedidos de ajuda para apoiar os refugiados e para as caravanas humanitárias que estão a ir para a Ucrânia. Aquilo que fizemos foi optar por só ajudar a integração e o acolhimento de refugiados em Portugal, e de direcionar para os Bancos Alimentares da Polónia, Hungria e Ucrânia o apoio que é dado através da Federação Europeia dos Bancos Alimentares. Portanto, todos os pedidos para refugiados só prestamos aqui através da rede das instituições e das respostas que estão a fazer para os acolher.
Mas o Banco Alimentar associou-se à Plataforma We Help Ukraine?
A entreajuda é fundadora. É uma instituição irmã do BA, e está a ajudar na conceção e desenvolvimento desta Plataforma. Uma vez mais estamos aqui quando houver quem precise, mas tentando congregar.
Esta nossa determinação em lutar contra o desperdício e evitar sobreposições faz com que encaremos as plataformas informáticas como algo que nos permite potenciar os resultados, e através da Plataforma We Help Ukraine, queremos pôr em rede tudo aquilo que possa ser, para que se possa ajudar mais e melhor quem precisa de ajuda.
O Banco Alimentar já está a sentir dificuldades em termos de abastecimento? Fala-se em escassez e até racionamento de bens nos supermercados. Como é que está a situação?
Neste momento ainda não sentimos isso na prática, mas eu sou economista e sei bem o que é que as previsões dos consumidores têm como poder, e em breve vamos ter uma corrida aos produtos nos supermercados, até para fazer mais reservas em casa e evitar os preços que se antecipam acrescidos.
Agora, já hoje assistimos a subidas de preços, não é só do combustível e da energia, mas de outros bens básicos que já vimos que a pouco e pouco estão a aumentar: os cereais de pequenos almoço já aumentaram, o pão já aumentou. E este acréscimo de preços vai continuar nos próximos tempos.
O BA realizou, em finais de novembro, uma campanha de recolha de alimentos. É preciso agora reforçar esse apoio? Como é que se pode ajudar?
Faremos uma nova campanha de recolha de alimentos no último fim de semana de maio, e contamos com os portugueses uma vez mais. Sabemos que vai haver mais pessoas que necessitam de ajuda, e as pessoas que habitualmente contribuem, elas próprias vão ter de enfrentar este acréscimo de preços, portanto, na altura logo veremos, mas o que antecipo é que vamos ter aqui uns meses difíceis para todos nós, e em especial para as pessoas mais carenciadas.
"Os portugueses são extraordinários, vão acolher os refugiados. O único conselho que eu dava é que saibam que isto não é por pouco tempo"
As grandes superfícies e os produtores continuam a corresponder, mantendo as ajudas que dão durante o ano, ou prevê que também aqui possa haver algumas quebras?
São as empresas da agro-indústria e da agricultura que ajudam mais os Bancos Alimentares. A indústria transformadora e produtora de bens, as empresas do ramo agro-industrial, são os maiores doadores. As cadeias de distribuição doam os seus excedentes, e é um valor muito menor do que o da indústria e da agricultura. Vamos ver como é que se comporta a procura e como é que tudo isto é possível de organizar.
Já referiu, no entanto, que vamos passar tempos difíceis, sobretudo no setor social. Portugal delineou ao longo de 2021 uma Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. O atual contexto que estamos a viver, e que se prevê se agrave, exige uma revisão dessa própria estratégia?
A Estratégia eram grandes linhas, e aquilo que temos de refletir é sobre a forma como se implementam estas grandes linhas e se consegue inverter esta situação, onde os ciclos intergeracionais de pobreza se mantêm. Temos de cortar isto em Portugal, e sobretudo de congregar as ajudas que há a cada família.
Temos várias famílias que não são ajudadas, e temos outras que têm tantas ajudas que até as desperdiçam. O que é preciso é que - precisamente como esta Estratégia Nacional de Combate à Pobreza prevê - haja uma articulação das respostas para que se possam cortar os ciclos de pobreza. Mas, tudo isto conta com uma economia dinâmica, e o que vemos agora é que, de repente, há aqui um sobressalto de todas as previsões que tinham sido feitas pela situação de guerra inesperada que se vive, mas também por vários outros fatores que são ainda tão incertos e instáveis que não sabemos quais as consequências que vão ter num futuro próximo, quanto mais a médio prazo.
Que conselho deixa ao próximo Governo em termos de prioridades?
A prioridade são as pessoas, sempre as pessoas. No centro dos processos de decisão económica têm de estar as pessoas, temos de procurar que haja mais emprego e que as pessoas se possam sentir como cidadãos plenos, seja por via do consumo, seja por via do trabalho. Que todas as decisões que sejam tomadas não esqueçam que as pessoas é que têm de estar no centro.
Para finalizar, como é que comenta esta onda de solidariedade que tem mobilizado o país na ajuda aos refugiados da Ucrânia? Está a correr como devia, precisa de alguns ajustes?
Os portugueses são um povo extraordinariamente solidário. Extraordinariamente! Em caso de catástrofe - não é a primeira, já vimos várias - as pessoas mobilizam-se, dão tudo o que têm em casa, querem ajudar, querem ir, são carrinhas que vão a caminho da Ucrânia… Eu gostava de ver isto um pouco mais organizado, até porque por vezes algumas das iniciativas acabam por ter um custo superior àquelas que teriam se fossem conjugados os esforços. Mas, percebo que, em situação de emergência, as pessoas tenham excesso de voluntarismo e queiram ajudar a todo o custo. É o que se verifica hoje…
Já sabemos que os portugueses são extraordinários, vão acolher os refugiados, seja nas suas casas, seja procurando integrá-los. O único conselho que eu dava é que as pessoas saibam que isto não é por pouco tempo. Os refugiados que estão a chegar vêm por bastante tempo, a situação na Ucrânia, mesmo que a guerra acabe em breve - e esperamos que possa ser assim -, vão ser precisos muitos anos para reconstruir aquele país.
Temos de acolher o melhor possível os refugiados ucranianos, na maioria são mulheres e crianças, vêm muito magoados da guerra, fugiram, têm de aprender a nossa língua e temos de ser, uma vez mais, um país de acolhimento, como sempre fomos.