14 jun, 2022 - 08:00 • Rosário Silva
Uns meio ensonados e outros mais despertos. Um a um, entram na sala de aula, pelas 8h30, onde os espera o habitual cumprimento, cheio de energia, da professora Manuela Vicente.
“Vamos lá a acordar e abrir o caderno da escola para começarmos a nossa aula, hoje com cálculo mental e, depois, vamos falar de poupanças”, anuncia a docente à turma do 3.º ano, da Escola Básica da Comenda, que pertence ao Agrupamento de Escolas Gabriel Pereira de Évora.
Esta é uma das oito escolas portuguesas que está a testar o novo programa de Matemática para o ensino básico, procurando ir ao encontro dos objetivos apontados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE).
As novas Aprendizagens Essenciais começam já a ser aplicadas no ano letivo 2022/2023, aos 1.º, 3.º, 5.º e 7.º anos de escolaridade, para serem alargadas a todo o ensino básico nos dois anos letivos seguintes.
Mantém-se a resolução de problemas, a comunicação e o raciocínio. A novidade está na ligação da Matemática a outras áreas. A álgebra, o pensamento computacional ou a educação para a cidadania através da educação financeira são alguns dos conceitos introduzidos.
“O que se pretende, por um lado, é desenvolver a literacia matemática destas crianças, enquanto cidadãos do futuro. Por outro lado, é fazer com que gostem mais da matemática e tenham melhores resultados. Aliás, um dos princípios do programa é a Matemática para todos, inclusiva, para que ninguém fique de fora”, comenta, à Renascença, Manuela Vicente, enquanto prepara um primeiro exercício de cálculo mental.
Decompor o dividendo ou fatorizar o divisor, começam a fazer parte da linguagem destas crianças que aprendem a efetuar uma divisão, mentalmente.
“Fatorizar é transformar o divisor numa multiplicação. Esta é uma estratégia que gostava que aprendessem hoje”, diz a professora aos seus 19 alunos, enquanto a Mariana vai ao quadro resolver o problema.
A aula passa a correr e não há tempo para mais cálculo mental. É preciso avançar para um tema que está na ordem do dia: poupança.
“Hoje a professora veio preocupada com a poupança. Estive a noite toda a pensar nisto”, revela Manuela Vicente, questionando os alunos: “Alguém me diz o que é poupar?”
Dedos no ar, todos querem participar. Aqui e além, ouvem-se diferentes respostas como: “é não gastar dinheiro” ou “é gastar menos dinheiro”.
Entre uma ou outra dica que a docente acrescenta para suscitar a discussão, vão nascendo ideias até se chegar ao ponto pretendido: analisar duas campanhas promocionais de um conhecido supermercado.
A próxima hora reparte-se entre a experiência de quem já foi às compras, as histórias que há para contar e a resposta, em pequenos grupos, às perguntas que é necessário responder para se concluir qual das campanhas é, afinal, a mais vantajosa.
No final, após a discussão coletiva, a conclusão recebe o consenso de toda a turma, com a professora a deixar o alerta: “Nunca acreditem de ânimo leve numa promoção. É a Matemática que nos faz abrir o olho”.
À Renascença, Manuela Vicente, que só encontra vantagens nestas novas aprendizagens, afirma que se procura “que haja sempre muita ligação com a realidade, para que eles percebam que termos conhecimentos de Matemática dá-nos poder, do ponto de vista da nossa intervenção enquanto cidadãos”.
E, prossegue: “A Matemática não é aquela coisa chata, a preto e branco, que está certa ou está errada, que nada tem a ver com o nosso dia a dia, mas que está presente em muitas vertentes da nossa vida, e que se tivermos conhecimentos matemáticos, somos cidadãos mais informados e com espírito critico, capazes de tomar decisões mais informadas e conscientes”.
Na realidade, seja no supermercado, seja no banco ou onde for, cidadãos mais esclarecidos são sempre cidadãos mais intervenientes numa sociedade onde a educação financeira é fundamental.
Depois de uma animada discussão, antes do intervalo, os alunos são unanimes e todos dizem ter aprendido muito com a aula.
“Aprendi, muito”, diz o Guilherme, coadjuvado pelo Vicente, o Diego, a Maria Clara e a Mariana: “A Matemática serve para nos tornarmos mais inteligentes, alertados e resolvermos os problemas que existem no mundo”.
Dificilmente conseguirão “resolver os problemas do mundo”, mas, seguramente, já estão capacitados para dar alguns conselhos aos pais.
“Vou dizer aos meus pais para terem cuidado nas compras, pois os descontos, as promoções, podem ser enganadoras”, alerta o Gustavo.
Satisfeita com as primeiras duas horas e meia de aula, a professora Manuela Vicente vai dizendo que “se eles, desde muito cedo, gostarem de Matemática, isso vai, com certeza, ajudá-los no seu percurso escolar”.
Mas, se essa ligação não for “tão positiva” e traduzir-se em “frustrações constantes, em que eles percebem que não são capazes de fazer, que a sua resolução não foi valorizada”, isso fará, certamente, “com que se afastem cada vez mais da Matemática e isso não é o objetivo”, assegura.
O novo programa é “mais vasto e exigente” do ponto de vista do trabalho com os alunos. Para os professores, esta experiência “de operacionalização ao nível do 3.º ano” também tem sido rigorosa, mas muito “estimulante”, tendo em conta que, “sem manuais escolares”, o trabalho é suportado “na equipa” que se reúne semanalmente para “preparar o estudo e propor aos alunos “tarefas desafiantes, com ligação à realidade”, acrescenta a docente.
O novo documento curricular, a que a Renascença teve acesso, apresenta as aprendizagens matemáticas a que os alunos do ensino básico devem ter acesso. Foi elaborado por uma equipa multidisciplinar, destacando a importância da “literacia matemática”, para formar cidadãos para novos desafios, nomeadamente, “científicos e tecnológicos”.
“Matemática para todos” é um dos princípios que sustenta este documento curricular, dirigindo-se a todos os alunos, “afirmando inequivocamente que ninguém pode ficar excluído da Matemática e que cada um deve ter oportunidade de ser sujeito de experiências de aprendizagem matematicamente ricas e desafiantes”.
Outro princípio que se assume é “a Matemática é única, mas não é a única”, que perspetiva a Matemática “no quadro de uma educação global e integral do indivíduo, na qual a Matemática contribui, a par com as outras áreas curriculares e em diálogo com elas, para o desenvolvimento das áreas de competências transversais indicadas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”.
O terceiro princípio adotado é “Matemática para o século XXI”, que corresponde “à focagem das aprendizagens matemáticas dos alunos no que é efetivamente relevante nos tempos atuais”, com desafios “distintos dos do século passado, acompanhando as tendências internacionais no que diz respeito a uma seleção criteriosa do que os alunos devem aprender e como”.
Três princípios que estão na base desta nova reforma, com implicações nos conteúdos de aprendizagem e nas orientações metodológicas e de avaliação.
Em 2022/2023, as novas Aprendizagens Essenciais começam a ser aplicadas nos 1.º, 3.º, 5.º e 7.º anos de escolaridade.