30 jul, 2022 - 12:18 • Ana Carrilho
Cristina Siza Vieira, presidente executiva da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP), admite que o setor ainda não está desperto para esta questão do tráfico humano. Por isso, considera que esta primeira ação de sensibilização lançada na sequência de uma campanha da cadeia internacional Marriott é um bom contributo para aumentar a atenção relativamente a alguns indicadores “e para fazer uma coisa que não é muito comum em Portugal”.
“Acontece uma coisa, rejeitamos, mas percebemos intuitivamente que há ali algo que não está certo. E temos dificuldade em dar o passo à frente e fazer a denúncia. Vê-se, por exemplo, nos casos de violência doméstica. É por isso que também acho que esta ação é importante. Há sinais que não podem ser ignorados”.
Segundo as Nações Unidas, há cerca de 21 milhões de pessoas vítimas de tráfico, nas suas diversas formas, em todo o mundo. 7% são exploradas nos Estados Unidos e Europa Ocidental.
Para Rita Bessa, da APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – é absolutamente essencial identificar os fatores para poder atuar.
O ciclo do tráfico envolve o Recrutamento, o Transporte e a Exploração.
Em grande parte dos casos, as pessoas são aliciadas por recrutadores com falsas promessas, nomeadamente de trabalho e melhores condições de vida noutra região ou noutro país. Mas também há casos em que é a própria vítima que vai ao encontro do recrutador através de contactos informais, por vezes de familiares, amigos ou de alguém com quem tem proximidade, alerta Rita Bessa.
O transporte destas pessoas é feito de barco, carro, comboio ou avião, sendo que o primeiro destino nem sempre é o final. Também é normal viajarem acompanhadas de alguém que as controla e tem os seus documentos.
Os exploradores, por seu turno, comportam-se como donos da vítima, que é explorada de diversas formas (laboral, sexual, com ofensas físicas, encarceramento, retenção dos documentos, exigência de pagamento por suposta dívida pelo pagamento de transporte) e por vezes, vendida várias vezes a outros exploradores.
As vítimas são homens, mulheres, crianças, de países subdesenvolvidos ou não. Mas habitualmente com alguma vulnerabilidade, que os exploradores aproveitam. Mas também acontece com pessoas “supostamente informadas”, referiu a representante da APAV, que deu um exemplo real.
“Chegou-nos um caso de uma jovem angolana, licenciada em Direito, que veio para Portugal com o objetivo de prosseguir os estudos. Através de contactos com pessoas conhecidas, veio para casa de uma família em que deveria desempenhar a função de baby-sitter, a troco do alojamento. Mas tal nunca aconteceu: tinha de trabalhar o dia inteiro, não tinha os documentos, nunca podia sair da casa e naturalmente, não pôde estudar. Aproveitou uma saída esporádica para pedir ajuda”.
A prevenção é importante, o que passa pelo investimento em formação e informação para reconhecer os sinais de exploração, frisa a responsável da APAV que valoriza a iniciativa de responsabilidade social do grupo hoteleiro e da associação, pioneiros no setor privado.
Num folheto especialmente destinado aos empregadores, a associação refere alguns fatores a ter em atenção:
- muitos trabalhadores colocados pela mesma agência ou recrutador
- o recrutador fala em nome de um ou mais trabalhadores, impedindo o contacto direto com a entidade patronal
- o trabalhador está assutado e parece ter recebido instruções do que dizer ao empregador
- um ou mais trabalhadores apresentam sinais de que os seus movimentos estão a ser controlados (não podem sair livremente, são sempre levados por uma pessoa ou grupo)
- o trabalhador apresenta lesões físicas ou sinais de má nutrição, falta de cuidados médicos ou de higiene
- o trabalhador não está na posse dos seus documentos
- o ordenado não é pago diretamente ao trabalhador ou não fica na sua posse
- o trabalhador diz que tem uma dívida para com o recrutador
- muitos trabalhadores dividem a mesma habitação e vivem em condições precárias
Esta é uma questão para a qual a maioria das pessoas ainda não está sensibilizada, mas Rita Bessa mostrou-se agradada com a reação de funcionários do Marriott de Lisboa e do Sheraton a uma situação de teste.
Um suposto casal chegou à Receção para reservar um quarto. O homem liderou sempre o processo, com a mulher atrás, cabisbaixa e sempre calada. Foi ele quem apresentou os documentos dos dois, e insistiu em fazer o pagamento em dinheiro, argumentando que não tinha cartão bancário.
Num dos hotéis conseguiu fazer a reserva, no outro foi-lhe negada. Neste, funcionária intuiu que se passava algo de estranho e mostrou-se preocupada com a mulher. Alertou a chefia e tudo se encaminharia para o pedido de intervenção da PSP. Não chegou a acontecer porque os “atores” - ambos da APAV – com o diretor da unidade hoteleira (o único que tinha conhecimento da ação) explicaram o que se estava a passar e o objetivo.
No outro hotel, o casal conseguiu o quarto e até jantou na sala. Mas tanto a rececionista como ao empregado de mesa se sentiram incomodados com os comportamentos do “casal”, o silêncio absoluto da mulher ou o facto de ter sido o homem a escolher a ementa para os dois. E também não deixaram de o reportar aos superiores.
“Este é um crime complexo, os indícios não são prova, mas a sua eventual existência pode ser sinalizada por qualquer cidadão junto do Ministério Púbico, autoridades policiais (PSP, GNR, SEF ou PJ) ou ONG (Organizações Não Governamentais) que trabalham nesta área, como a APAV.
Segundo o art.º 160º do Código Penal, o tráfico humano é um crime público e não tem de ser a vítima a fazer a denúncia”, frisa Rita Penedo, chefe de equipa do OTSH - Observatório de Trafico de Seres Humanos. Até porque muitas vezes, as vítimas não se reconhecem como vítimas de tráfico.
As estatísticas referem que entre 2008 e 2021, o OTSH recebeu 2.338 denúncias válidas e até 2020 foram confirmadas 810 vítimas.
71% são vítimas de exploração laboral. Destas, 83% são homens e 98%, adultos. A agricultura é o setor mais exposto e nomeadamente no Alentejo, na região de Odemira.
Portugal é sobretudo um país de destino de tráfico humano. A exploração laboral e sexual são as duas principais formas. Mas Rita Penedo sublinha que muitas vezes, uma pessoa não é vítima apenas de um tipo de exploração.
Um crime que gera receitas ilícitas ao nível do tráfico internacional de estupefacientes e de armas, capaz de pagar a dívida de muitos países desenvolvidos, referiu Fernando Bispo, inspetor-chefe da Polícia Judiciária, uma das forças policiais (a par do SEF) que investiga o combate ao tráfico de seres humanos.