06 nov, 2022 - 08:35 • Pedro Valente Lima
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Estes são títulos noticiosos de um verão, em Portugal e em diversas partes do mundo, marcado pela seca severa e por vagas de calor, fenómeno cada vez mais frequente.
Neste domingo em que se inicia, no Egito, a 27.ª Conferência das Partes das Nações Unidas (COP27), a Renascença falou com Selma Guerreiro, investigadora da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, especializada em matéria de ondas de calor e secas.
Segundo o mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa), o Mediterrâneo, incluindo Portugal, será das regiões mais afetadas pelo calor severo e pela escassez de água na Europa.
De acordo com os dados divulgados, suportados pelo trabalho de investigação de Selma Guerreiro, Portugal e Espanha deverão ter secas mais severas até 2050, em comparação com os 50 anos anteriores.
"Mesmo nos modelos [de previsão] mais otimistas, nós chegamos a ter o dobro das secas. Nas mais pessimistas, temos secas, por exemplo, em Faro, que poderão ser até dez vezes piores do que foram no período histórico", revela a investigadora.
Os efeitos da seca mais severa no sul da Europa, de acordo com dados do IPCC, poderão levar a que mais de um terço da população sinta escassez de água, sob uma projeção de aquecimento global em 2ºC. Esse risco duplicará caso o aquecimento atinja os 3ºC.
Para Selma Guerreiro, a resposta tem de ser imediata e passar pela "valorização da água". A solução passará não só pela contenção de gastos, a título pessoal ou de atividades como a agricultura, mas também pela gestão inteligente dos recursos hídricos.
"Temos que olhar para as águas subterrâneas e para as águas superficiais, rios e barragens, e ver o que é que podemos usar. Mas grande parte vair ter que ser cortar nos consumos, gastarmos menos água", salienta.
O IPCC descreve também uma redução do caudal dos rios do Mediterrâneo, entre os 12% e os 15%, assim como já se regista uma queda constante dos níveis de precipitação e da capacidade dos solos em reter a água.
Aliás, a precipitação em Portugal, na época baixa (entre outubro e março), diminuirá mais de 10%, sob um aquecimento global de 3ºC.
"Infelizmente, são coisas que foram previstas. O que eu percebi que iria acontecer era realmente o aumento da época seca. Ou seja, passámos de ter simplesmente um verão seco para termos uma primavera, verão e outono secos e quentes, que é o que se tem visto nos últimos anos", explica a investigadora.
A falta de água também impactará, por exemplo, as reservas de água de Portugal para produção de energia hidroelétrica. Segundo o relatório do IPCC, sob um aquecimento global de 2ºC, o país deverá perder 10% da sua capacidade de gerar eletricidade deste tipo.
O mesmo documento realça que outras previsões, com "elevada confiança", estimam que o Mediterrâneo possa perder quase 40% da sua capacidade de produção hidroelétrica na década de 2080.
Selma Guerreiro deixa, assim, o alerta: "As secas já começaram a aumentar, as ondas de calor já estão a aumentar". A investigadora diz que as consequências do aquecimento global já estão à vista e que "um dos grandes problemas é que já nos devíamos ter começado a adaptar".
"Tem que se deixar de olhar para as alterações climáticas como se fosse algo que vai acontecer no futuro e perceber que já está a acontecer."
Segundo o relatório do IPCC de 2022, as ondas de calor também deverão intensificar no território português.
Um aumento de 1,5ºC a nível mundial pode significar mais dez dias, por ano, com temperaturas máximas superiores a 35ºC. Se o aquecimento global ultrapassar os 3ºC, o interior do país pode contar com mais 20 dias com temperaturas superiores a 35ºC.
"No trabalho que eu fiz [sobre ondas de calor], que cobria as cidades portuguesas e europeias, foi exatamente o mesmo que vimos. Um aumento de ondas de calor em toda a Europa, tanto em termos do número de dias, mas também em termos de temperatura máxima", aponta Selma Guerreiro.
A investigadora da Universidade de Newcastle exemplifica que, "em Lisboa, e quase todas as cidades portuguesas, num cenário otimista", espera-se um aumento de, "pelo menos, mais 3ºC de temperatura máxima durante as ondas de calor". Num cenário mais pessimista, os valores disparam para um aumento entre os 7ºC e 8ºC.
"Estamos a falar de valores inéditos. Temos que realmente pensar que vamos ter ondas de calor piores do que o que estamos habituados. Tanto em termos do valor da temperatura máxima, como em termos de duração e de frequência", sublinha Selma Guerreiro.
Onde há mais calor, haverá mais fogo? A investigadora portuguesa diz que "sem dúvida".
"Com o aumento das temperaturas e com condições mais secas a acontecerem logo pela primavera, e depois até mais tarde, durante o outono, temos não só um pioramento das condições em si, como também um alargamento da época de fogos - que, aliás, se tem visto já nos últimos anos."
De acordo com o IPCC, o aumento das ondas de calor, aliado às secas e outros fatores deverá estender a duração das épocas de incêndios florestais, "aumentando a probabilidade de fogos maiores e mais severos". A área ardida do Mediterrâneo, sob um aquecimento global de 3ºC, será o dobro ou mesmo o triplo (187%) dos incêndios atuais.
Portanto, Selma Guerreiro diz ser "uma questão de recursos": "Porque vamos ter que ter um dispositivo para conseguir lidar com fogos durante muitos mais meses do que o que estamos habituados".
Este domingo, o Egito prepara-se para receber a 27.ª Conferência das Partes das Nações Unidas. Selma Guerreiro espera que seja mais uma oportunidade para engendrar uma solução coletiva de combate às alterações climáticas. "Na realidade, não temos muitas mais alternativas."
Os acordos alcançados nesta conferência, tal como as decisões da ONU, não são vinculativos. "Os limites das emissões [poluentes] são voluntários, são os próprios países que se impõem a eles próprios e não significa que depois cumpram", aponta.
"Mas é o primeiro passo, porque se não tivermos [limites], ao menos temos que começar para algum lado", realça.
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No entanto, a investigadora lamenta que muitos dos objetivos possam ser uma miragem: "O problema é que que todos concordaram que temos que manter o aquecimento global abaixo dos 2ºC e, possivelmente, abaixo de 1,5ºC. Ora, eu penso que [reduzir para] 1,5ºC seja impossível neste momento".
E se o objetivo passar por limitar aos 2ºC de aquecimento global? Ainda assim, "temos que mudar muito rapidamente", reforça Selma Guerreiro, que espera que, nesta COP27, "os países realmente sejam um pouco mais ambiciosos e que cumpram com as reduções que propõem".
"Temos muito por fazer, sem dúvida. Mesmo com todos os cortes de emissões que os países concordaram, ainda estamos a olhar para um futuro à volta dos 3ºC ou 4ºC [de aquecimento]. Portanto, ainda há muito por fazer para ficarmos abaixo dos 2ºC", salienta.
"E o pior é que tem de ser feito muito rapidamente, porque estamos estamos a ficar sem tempo."