25 nov, 2022 - 08:30 • Ângela Roque
Com os salários que se pagam em Portugal são cada vez mais as famílias em risco de rutura, e a situação vai piorar no primeiro semestre de 2023. Vai ser “um semestre decisivo”, antecipa a presidente do Banco Alimentar Contra a Fome (BA), que em entrevista à Renascença alerta também para as dificuldades das instituições sociais. Economista de formação, diz que tem faltado visão estratégia e de “longo prazo” para combater a pobreza em Portugal, e que os subsídios são meros “paliativos”.
Nesta entrevista Isabel Jonet agradece, ainda, toda a ajuda que recebeu para repor o telhado do armazém do BA de Alcântara, que “voou” na intempérie de há 15 dias, mas ficou arranjado esta quinta-feira. E espera que muitos sejam solidários com a rede de 21 bancos alimentares que há no país, e que fazem chegar ajuda a quase 400 mil pessoas através das 2.600 instituições que apoiam.
Intitulada 'Juntos vamos alimentar a esperança', a nova campanha de recolha de alimentos decorre sábado e domingo nos supermercados, mas até 4 de dezembro é possível contribuir através da ajuda-vale, ou pela internet.
O Banco Alimentar Contra a Fome realiza no próximo fim de semana mais uma campanha de recolha de alimentos. O atual momento, de grande dificuldade para tantas famílias, faz desta campanha uma campanha particularmente importante?
No próximo fim de semana os 21 bancos alimentares vão estar em nova campanha. E os portugueses conhecem bem os bancos alimentares, conhecem bem a mensagem que estas campanhas trazem já desde há mais de 32 anos à população portuguesa, que é uma mensagem de partilha e de dádiva.
Nesta campanha pensámos que era muito importante adicionar um novo ingrediente, o da esperança. Estamos numa altura particularmente sensível, onde há muitos fatores que contribuem para nos retirar esta esperança de que a situação vá melhorar a breve trecho. Se, por um lado, estávamos a sair de uma pandemia, mergulhámos logo na guerra da Ucrânia, quase à nossa porta, na Europa, mas com o peso que tudo isto traz em termos psicológicos e de ansiedade, também tivemos de acolher muitos refugiados.
Houve consequências que decorrem tanto da pandemia e da crise económica que se viveu nessa altura, como também desta guerra, que fazem com que a taxa de inflação tenha subido muito. Foi injetado muito dinheiro na economia, e de repente estamos a pagar o preço desse dinheiro que foi injetado e fez subir os preços. Mas, há uma coisa que em conjunto com esta inflação vai trazer uma perturbação adicional a muitas famílias, que é a subida das taxas de juro que tem sido mantida. Preveem-se sete subidas das taxas de juro pelo BCE, que se refletem, obviamente, nos juros dos créditos à habitação, e muitas famílias, sobretudo mais novas, ousaram comprar casa e esta prestação ocupava já um peso muito significativo do orçamento familiar.
E vão ter ainda mais peso...
Mais peso pelo lado da habitação, mais peso pelo lado da alimentação, da energia e das despesas correntes do agregado familiar, e isto faz com que as pessoas não tenham dinheiro até ao fim do mês.
"Como ainda se prevê mais aumentos das taxas de juro até ao final do ano, que se refletirão no primeiro semestre 2023, penso que temos de estar muito atentos, porque o próximo semestre é um semestre decisivo para muitas, muitas famílias"
Haver menos gente com menos capacidade para ajudar pode refletir-se em termos de campanha? Receia isso?
Há mais gente com menos capacidade para ajudar, mas penso que mesmo essas pessoas vão tentar ser solidárias e doar, talvez menos quantidade de produtos, porque estão mais caros. Por isso o apelo é que sejam mais pessoas a doar para que nada falte neste período, que é preciso estar muito presente nas famílias portuguesas, à mesa de quem precisa.
Temos pessoas mais velhas que vivem com pensões reduzidas e que são afetadas sobretudo pelo aumento da inflação, mas depois temos as pessoas que ficam numa situação de pobreza conjuntural, que são afetadas também pelo crescimento dos juros. E é a associação destas duas circunstâncias que nos obriga a ser ainda mais ativos na procura de pessoas que façam parte desta cadeia de solidariedade que o Banco Alimentar, ano após ano, tem vindo a estruturar em Portugal.
"Infelizmente em Portugal temos um problema de baixos salários e de precariedade de emprego terrível, e as pessoas não conseguem fazer face àquilo que são as despesas do seu agregado familiar com o que ganham, quando esse salário é muito próximo do salário mínimo. Não chega".
Os dados oficiais sobre a pobreza têm mostrado que há cada vez mais pessoas que até trabalham, mas não ganham o suficiente para subsistir. Constatam isso? Há pessoas em carência alimentar, mesmo entre quem tem emprego?
O preço da habitação é muito, muito elevado em Portugal, seja a habitação própria através dos créditos assumidos, seja a habitação que é arrendada. Temos hoje muitas famílias que partilham casa, jovens que até dividiam rendas com amigos e que voltaram para a casa dos pais ou até para casa dos avós, quando já tinham ganho a sua autonomia.
Há que ter atenção a estas famílias que muitas vezes ficam numa situação de quase rutura. E é por isso que a mensagem nesta campanha é a esperança que a partilha de um alimento pode trazer à vida de uma pessoa e destas famílias que trabalham, que muitas vezes têm mais do que um emprego, que correm de um lado para o outro para que nada falte à mesa dos seus filhos.
A esperança de que todos sejam mais atentos e mais solidários?
A esperança e a certeza de que seremos atentos, e a esperança de que esta situação vai mudar. Tem de mudar.
"Muitas famílias estão cansadas de viver esta vida de baixos salários, de se esgotarem a correr de um lado para o outro, e afinal na economia parece que nada muda, que aquilo que poderia mudar não é corretamente planeado, ou não se pensa a longo prazo".
Já perdemos anos a falar dos mesmos problemas e não conseguimos mudar esta situação.
Entrevista Renascença/Ecclesia
Responsável pela associação João 13, de apoio aos (...)
Estamos a conversar numa altura em que ainda não ocorreu a votação final global do Orçamento de Estado. As medidas que já foram tomadas e anunciadas são suficientes?
Os orçamentos são aqueles que muitas vezes são possíveis. Penso que devia existir mais ambição na criação de emprego mais qualificado e mais bem remunerado. Mas, sobretudo, deviam ser dados incentivos fiscais às empresas para que possam ser elas próprias a formar os seus colaboradores, pessoas que estejam em situação de desemprego ou com baixos salários.
Porque temos uma dissonância, por um lado temos empresas que procuram mais pessoas, e por outro temos pessoas que ainda têm salários muito baixos. Se conseguíssemos que as empresas tivessem um benefício fiscal para formarem pessoas, com o compromisso que depois as vão contratar, caso a formação seja bem sucedida, se calhar estávamos aqui a criar uma dinâmica positiva na economia que gerava mais emprego.
Muitas empresas também mudaram e requerem pessoas com qualificações, por exemplo, tecnológicas, mas a formação que é dada não se adequa àquilo que o mercado hoje solicita. Há um desajuste entre vários setores que se pode resolver por via financeira, e devia estar previsto no orçamento, mas de modo a criar uma dinâmica positiva na economia e contando mais com as empresas, porque as empresas são realmente quem pode gerar este emprego mais duradouro e mais bem remunerado.
"A educação é a única forma de se alavancar uma luta contra a pobreza, e nós, em Portugal, temos uma transmissão geracional de pobreza terrível"
Referiu há pouco que às vezes falta um olhar a longo prazo. Isto devia implicar mais o setor da educação, a formação que é dada?
Hoje temos mais pessoas com mais educação, mas não temos pessoas com muita ambição de serem muito bons profissionais para poderem ser mais bem remunerados. Muitas pessoas estão conformadas com a sua situação, porque sabem que o Estado não lhes vai faltar. E ainda bem que não falta a quem precisa realmente destes apoios, mas temos muitas pessoas que deixaram de ter a ambição de mudar a situação em que se encontram, porque acreditam como certo aquilo que são prestações sociais. E a diferença entre o cúmulo das várias prestações sociais é muito pequena para aquele que é o rendimento mínimo. Não há um incentivo a haver uma procura de trabalho mais qualificada e as pessoas acomodam-se.
Muitas pessoas estão fora da economia e vivem de biscates para além daquilo que são os apoios sociais, e isto, de alguma forma, tem de mudar. Tem de se olhar para estes problemas com uns olhos diferentes, e isso tem faltado. Continuamos a ter soluções que são paliativas e assistencialistas, sem conseguir gerar uma verdadeira alteração naquilo que é uma pobreza estrutural, que sempre que há uma conjuntura desfavorável acresce também uma pobreza conjuntural.
Não estamos a ter a abordagem certa no combate à pobreza?
Parece-me que não, e que se poderia valorizar mais os vários parceiros que no terreno devem trabalhar de forma mais articulada. Mas, sobretudo, parece-me que se deveria quase “agarrar” em cada uma das famílias e ter uma espécie de tutor ou mentor que as ajudasse, e aos filhos, a terem mais ambição, mais responsabilidade, e a terem acesso a tudo aquilo que lhes permita ter um futuro mais feliz. E, sobretudo, um salário melhor, que permita gerar uma melhor condição de vida.
Hoje temos muitas pessoas que estão fora da economia porque não se sentem agentes integrados nessa economia.
Já referimos as dificuldades das famílias, mas há também muitas instituições que o Banco Alimentar apoia e que também estão a passar por muitas dificuldades?
O BA são 21 bancos alimentares em todo o território nacional, que hoje têm uma rede de cerca de 2.600 instituições que levam alimento a quase 400.000 pessoas carenciadas, a quem são entregues ou refeições confecionadas - servidas nos lares, nas creches, etc - ou cabazes de alimentos.
Estas instituições são parceiros indissociáveis dos bancos alimentares, porque os BA não entregam nada diretamente às famílias, precisamente para não prolongar assistencialismos e poder promover a autonomia das famílias. As instituições hoje deparam-se com mais pedidos de famílias, mas também, elas próprias, com mais custos: a comida que servem nos lares e creches é mais cara, mas também o gás, a eletricidade e energia são mais caros, e fazem mais pedidos aos bancos alimentares. Portanto, há aqui uma pressão pelo lado da procura, que nos obriga a tentar arranjar mais produtos para poder fazer face a este acréscimo da procura.
Porto
Nova campanha do Banco Alimentar Contra a Fome a 2(...)
O Banco Alimentar tem sentido dificuldades em termos de abastecimento, de donativos?
"Até agora ainda não tivemos nenhuma quebra de donativos. O ano passado, para fazer face à situação gerada pela pandemia, lançámos a rede de emergência alimentar, que tem angariado muitos donativos que permitem adquirir os alimentos que não são doados pelas empresas e que completam os cabazes".
Temos carência de fruta. Este ano foi um mau ano agrícola, houve menos retirada de frutas e legumes, com o apoio dos mecanismos de gestão de crises da Comissão Europeia e financiados pelo IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas). Espero que o próximo ano seja diferente, porque quando há uma crise como estas, as famílias cortam logo em alguns produtos e grupos de alimentos. A fruta é um deles, mas é essencial para uma dieta equilibrada, e muitas crianças, se não comerem a fruta nestas instituições, não a encontram em casa, portanto é fundamental conseguirmos manter um cabaz equilibrado do ponto de vista nutricional.
Procuramos sempre que aquilo que entregamos às instituições possa conter produtos alimentares de todas as categorias. Mas, quase nunca temos carne, e quase nunca temos peixe. As instituições têm de destacar recursos para este tipo de alimentos, mas sabem que podem contar com os bancos alimentares para aqueles que são os mais básicos e que são os que pedimos na campanha, seja na campanha saco, nos supermercados, seja na campanha na Internet, onde as pessoas até dia 4 de dezembro podem doar alimentos no site, quer estejam em Portugal ou no estrangeiro.
Temos muitas doações de pessoas que não residem em Portugal, mas querem ajudar as famílias da região de onde partiram, sejam emigrantes, sejam pessoas que ainda têm, de alguma forma, afinidade com Portugal.
E essa ajuda mantém-se ao longo do ano? É regular, ou é só nas campanhas?
Concentra-se basicamente nas campanhas e recebemos donativos sobretudo através do canal online. Mas há pessoas que hoje fazem uma doação regular, todos os meses querem dar um cabaz, e através do site dão esse cabaz sem qualquer custo. É uma das maravilhas da nova tecnologia, em que podemos chegar a pessoas diferentes, pessoas que não vão ao supermercado, jovens que estão habituados a comprar tudo na internet mas que também querem ser solidários.
Os produtos essenciais de que falou - como a carne, o peixe, a fruta ou os legumes - são dados por produtores e cadeias de supermercado? Tem de haver mais sensibilização para que vos forneçam com mais regularidade?
Os bancos alimentares basicamente recuperam produtos que são excedentários, e não há grandes excedentes de carne e de peixe. Recebemos muitos legumes e fruta quando há excedentes da agricultura e são as cooperativas agrícolas, ou os operadores dos mercados abastecedores, que nos entregam estes produtos, e também empresas como aquelas que comercializam saladas ou legumes embalados...
Mas, só quando há excedentes?
Só. E não podemos recolher estes tipos de produtos pela sua perecibilidade, portanto nas campanhas privilegiamos produtos não perecíveis.
Esta campanha vai decorrer sábado e domingo. O que é que é prioritário assegurar?
Prioritário é sempre assegurar os produtos básicos: leite, arroz, azeite, enlatados, cereais de pequeno almoço, massa, bolachas, etc, são sempre aqueles bens que privilegiamos. Mas, mais do que tudo nesta campanha há este apelo à esperança, que cada um de nós sinta que não é preciso dar muito, mas que com a doação, nem que seja só de um alimento, está a ter um gesto que, para quem vai receber o produto, é a certeza de que alguém quis estar presente na sua vida e ajudar. Este ingrediente é talvez mais importante do que tudo nesta campanha, é esta esperança que não se pode perder. Com certeza que melhores tempos virão, que há sempre ajudas públicas para as pessoas mais carenciadas, que não vão faltar, mas há sempre franjas da população que precisam da nossa solidariedade e do nosso olhar.
Qual é a sua expectativa para esta campanha em termos de recolha? O que é que seria um bom resultado neste contexto difícil?
Estamos em época de Mundial, e eu estou quase como no Mundial: o melhor de tudo é conseguirmos sempre mais alimentos. Mas, no caso dos bancos alimentares, o que dizemos é que todas as campanhas são a melhor que é possível ter no momento. Portanto, não tenho previsões em termos de números.
Uma campanha do Banco Alimentar costuma reunir à volta de 1.100 toneladas na altura do Natal, e eu gostaria que pelo menos pudessemos garantir a todas as pessoas a que estamos a levar alimentação a mesma quantidade de alimentos. Não é só no Natal que estas pessoas precisam de comer. O Banco Alimentar trabalha todos os dias e entrega alimentos todos os dias, e gostaríamos de poder ajudar as pessoas enquanto elas precisarem de ajuda para ter a comida na sua mesa.
Os produtos que recolhem nesta altura vão sendo distribuídos ao longo do ano?
É feita uma gestão a seis meses, até à próxima campanha que é em maio, e em conjunto com os de outras origens, seja dos excedentes da indústria, seja produtos comprados com verbas à rede de emergência alimentar, seja de doações de supermercados, de particulares, escolas, empresas, cooperativas agrícolas, tudo posto em conjunto permite, ao longo dos próximos seis meses, garantir a alimentação a estas pessoas.
O Banco Alimentar teve um revés com o recente mau tempo que afetou a região de Lisboa e a zona de Alcântara, onde se encontra o vosso armazém, que ficou sem telhado. Como é que estão as coisas?
Foi um revés e um grande sobressalto, porque em dois minutos voaram quase 400 metros quadrados de cobertura de um dos armazéns principais onde armazenamos produtos. Mas, temos que dar graças porque não houve qualquer vítima humana a lamentar e não se estragou nenhum alimento!
Não houve chuva, a cobertura do telhado voou toda para trás, para a linha dos comboios, não caiu praticamente nada para dentro do armazém e não se estragaram alimentos. Tivemos que retirar os poucos alimentos que ainda estavam neste armazém, porque como estamos à beira de uma campanha estava vazio...
Mas, entretanto, choveu...
Choveu nos dias seguintes. Tivemos um conjunto enorme de boas vontades e não posso deixar de destacar as Infraestruturas de Portugal, o Exército e a Proteção Civil, que de imediato nos têm ajudado a reconstruir.
Naquele armazém temos uma campanha onde vamos ter mais do que 300 crianças, naquilo a que chamamos a 'campanha júnior', que quer já mostrar às crianças entre os seis e os 12 anos que podem também participar, e é precisamente neste armazém. Depois serão aí armazenadas à volta de 300 toneladas de produtos, assim espero.
Os voluntários, são quantos?
São muitos voluntários. Estimamos sempre que uma campanha do Banco Alimentar tenha à volta de 40 mil a 42 mil pessoas espalhadas nas lojas, a ajudar nos transportes, mas também nos vários armazéns dos 21 pontos do país, a colaborar. E fazem-no com muita alegria. São pessoas de todas as idades, de todas as convicções políticas e religiosas. Agora de certeza que temos pessoas que vão falar mais de futebol, porque esta é a altura, mas são pessoas que ombro a ombro lutam por uma mesma causa, e há uma animação coletiva que permite esta angariação de alimentos.
Oiça aqui a entrevista na íntegra.