28 nov, 2022 - 10:11 • Marta Pedreira Mixão
O psiquiatra e professor António Leuschner, que desempenhou o papel de presidente conselho Nacional de Saúde Mental, apela às autarquias que não "recusem" a saúde.
"Autarquias exijam, não digam 'eu não quero a saúde'. Isto é criminoso", instou o psiquiatra, durante a sua intervenção na conferência “A saúde mental no pós-pandemia. Estigma e combate”, que está a decorrer no Auditório da Assembleia Municipal de Gaia.
O psiquiatra faz estas declarações depois de o vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa ter dito ao jornal Expresso que a autarquia vai recusar a transferência de competências do Governo para a área da saúde.
Até abril, das 308 autarquias nacionais, apenas 70 tinham aceitado esta transferência de competências.
Ainda assim, Leuschner admitiu que a recusa das autarquias pode servir um propósito.
"Só tem um fundamento esta recusa: pressionar, como a autarquia do Porto já fez, a transferência de fundos. Isto não se pode traduzir em fundos, tem de se traduzir numa análise rigorosa das funções do Estado, como se levam a bom termo e como podem articular-se, da melhor forma possível os custos existentes", defende.
"Quanto mais pobres, mais desperdício, é assim a nível individual e a nível coletivo. Depois ouvimos que a Roménia nos vai ultrapassar, esquece-se e do resto".
"Autarquias peguem nos problemas dos vossos cidadãos, conversem com as autarquias vizinhas. As comunidades intermunicipais, as áreas metropolitanas são um avanço do ponto de vista organizacional porque dão escala", acrescenta, salientando que é preciso organizar as respostas em função dos cidadãos.
António Leuschner lembra que as autarquias são parte do aparelho de Estado que "estão mais próximas dos cidadãos e que melhor conseguem avaliar as necessidades", evitando que sejam criadas "respostas que não têm procura" e que haja investimentos de fundos de forma incorreta.
"Há fundos, há candidaturas, criam-se respostas. São necessárias? Depois vê-se. Entretanto, gastou-se o dinheiro".
Na sua intervenção, o antigo presidente conselho Nacional de Saúde Mental afirmou que "o estigma começa muitas vezes em cada um e espalha-se na sociedade".
António Leuschner destacou o papel da câmara de Gaia ao assumir que “a saúde e a saúde mental são um interesse particular da autarquia” e reafirmou "o papel da pandemia na perceção de que a saúde mental é um problema de todos, bem como o facto de a saúde mental não ser “apenas a ausência de doença, mas a perceção que as pessoas têm do seu bem-estar”.
“O problema do estigma tem muito a ver com ‘quem é quem’ neste sistema, não é por acaso que há diferenças de género na capacidade que as pessoas têm de reconhecer o seu sofrimento mental”.
“As mulheres reconhecem esse sofrimento muito mais precocemente do que os homens, isto não é por acaso, numa sociedade que ainda é, do ponto de vista laboral dominada pela área masculina. O que tende a não ser verdade em alguns setores, principalmente na área da saúde”, explicou.
O psiquiatra referiu ainda que “não podemos dissociar estas questões do tema da literacia”, destacando o papel da literacia sobre saúde mental entre as diferentes faixas etárias, nomeadamente o facto de os mais jovens olharem para "estes problemas com outra tranquilidade, enquanto os mais velhos ainda continuam a ter uma visão de antigamente".
"A dificuldade que há, muitas vezes, no reconhecimento por parte dos poderes públicos na corresponsabilização do setor e das várias políticas públicas. Já se falou da importância da solidariedade social neste aspecto, mas continua a haver um divórcio entre os dois sectores nestas coisas", defendeu, apontando a ausência de um representante da Segurança Social no painel de debate.
Sobre a estratégia de saúde mental e a entrada nos cuidados de saúde primários, António Leuschner destacou que “as pessoas para terem acesso efetivo têm de ter proximidade [do serviço de saúde]”, mas que não adianta ter um serviço se depois tiverem de esperar um ano.
"Não basta a integração da psicologianos hospitais gerais, quem diz a psicologia diz todas as áreas de saúde mental que integram as equipas multidisciplinares", salientou, destacando a importância deste trabalho.
O psiquiatra referiu ainda a importância do desenvolvimento e crescimento de "redes", destacando a importância da articulação das redes entre si e pede "foco nas pessoas e não nos serviços".
Sobre a evolução do sistema de saúde, o psiquiatra referiu que "há uma noção de que o acesso à saúde tem de ser garantido" a todos, uma "universalidade da garantia", mas que as pessoas internadas em hospitais psiquiátricos necessitam de ter também acessos a saúde geral e a uma plenitude dos cuidados, que muitas vezes é deficitário.
Por isso, refere, não se pode defender o encerramento dos hospitais psiquiátricos e pedir ao setor social que crie respostas de tipo hospitalar para os doentes que o setor público já não quer ter em hospitais psiquiátricos. O psiquiatra reitera que não defende os hospitais psiquiátricos, mas apela a que "não se misturem as coisas" e apela por isso à humanização das condições de internamento, para garantir a continuidade.
António Leuschner destacou ainda que não se podem confundir as necessidades e que é necessário criar uma retaguarda social para dar resposta às necessidades de internamento e continuidade de cuidados psiquiátricos.
Sobre a tecnologia, o psiquiatra defendeu que a "inovação é uma das boas heranças da pandemia", mas que "não se pode querar utilizar tecnologia do século XXI com equipamentos do século XX, o que acontece em alguns casos", porque "o sistema vai abaixo" e é "preciso andar a saltar de aplicação em aplicação" e "uma teleconsulta que poderia demorar pouco tempo demora muito mais". Leuschner defende, por isso, uma resposta integrada e que a interoperabilidade dos sistemas "é vital".
"Saúde é bem-estar físico, mental e social, diz a definição. Diz a OMS, agora, também que não há saúde sem saúde mental, nem saúde física, nem sem saúde social. É bom termos isto bem presente", rematou, distinguindo as métricas do bem-estar.
O psiquiatra fez ainda referência às "falsas urgências", questionando se estas vêm do "lado de quem as atende ou de quem as procura", justificando que há "dois lados desta moeda" - a perceção do próprio e o bem-estar objetivo, percecionado pelo outro.
"Há uma série de questões vitais para termos uma abordagem plena, holística, integrada, centrada na pessoa. Esta é a transformação necessária de que realmente se fala", concluiu.