10 jan, 2023 - 14:49 • Joana Azevedo Viana , Susana Madureira Martins
A procuradora-geral da República (PGR) destacou esta terça-feira que a "reclamada independência" do poder judiciário "peca por insuficiente, insatisfatória e até ilusória", dizendo que "a mera proclamação da autonomia do Ministério Público face ao poder executivo não basta".
No arranque do seu discurso de abertura do ano judicial, Lucília Gago diz que tarda já a "criação de condições efetivas que não condicionem, de forma severa", a atuação do MP e defende que é preciso uma reformulação das leis.
A PGR ressalta ainda que, na hora de atribuir responsabilidades pelas demoras e atrasos na Justiça, com destaque para "inquéritos fortemente mediatizados e por cujo desfecho se aguarda muitas vezes demasiados anos", torna-se "fácil, muito cómodo e estrategicamente conveniente para muitos apontar o dedo, em exclusivo, ao Ministério Público que dirige as investigações".
"Os sinais de desprestígio e de erosão no judiciário apresentam-se hoje como inegáveis, (...) sobressaindo (...) com ofuscante e até dolorosa nitidez no quadro de complexos, volumosos e arrastados casos mediáticos", assume Lucília Gago.
Para a procuradora-geral, é necessário reformular as leis para evitar esse arrastar de casos mediáticos.
"Uma aposta expressa e assumida em convergências de entendimento identificadoras dos principais diplomas ou segmentos legislativos carecidos de inadiável reformulação, em particular no domínio da organização judiciária e do direito penal e processual penal, perfilam-se capazes de contribuir com seriedade para melhor Justiça substantiva, restaurando a imagem e a confiança nela depositadas pelos cidadãos. Parece-nos incontestável que o tempo urge neste domínio."
As críticas foram também dirigidas à lei recentemente aprovada pelo Parlamento e que rege as ordens profissionais no setor da Justiça, referindo uma intolerável ingerência do poder político que vem condicionar por via disciplinar os advogados.
A procuradora-geral destaca no mesmo discurso que, "num país pobre e de fracos recursos", é "impensável e imperdoável" não aproveitar os Fundos Europeus "para que o mundo judiciário, em particular o Ministério Público, ganhe efetivo e imperdível avanço no domínio das tecnologias e sistemas de informação".
Neste ponto, e ressaltando que "as notícias, ano após ano, não são boas neste domínio", Lucília Gago correu o "assumido risco" de repetir que faltam oficiais de justiça afetos ao MP, uma situação "generalizada e insustentável" que compromete, "de forma muitíssimo severa, a tramitação de expedientes e processos e o regular funconamento da Justiça".
A PGR adianta que não faz sentido falar dos ganhos que a inteligência artificial permite alcançar "sem cuidar, mais tangivelmente, de tratar das necessidades prementes que a nível informático se fazem sentir e que condicionam o funcionamento ágil da máquina judiciária".
Nesse sentido, a responsável defende uma "reforma sem delongas que permita resolver os problemas de afetação de recursos humanos às diversas unidades orgânicas existentes no judiciário, abandonando estados de negação que constituem entropias do sistema comprometedoras de avanços".
"O diagnóstico (...) não pode constituir apenas mais uma tarde em que os soundbites da Justiça ecoam com particular sonoridade par alogo esmorecerem, enquanto os principais problemas, há muito identificados, subsistem ou se agravam, corroendo um dos pilares essenciais da estrutura do Estado."
Lucília Gago destaca a cibercriminalidade como uma das "áreas que vêm merecendo particular atenção do MP", deixando como notas positivas do ano 2022 o relançamento da Rede Cibercrime e o estabelecimento de "novas pontes para investigar crimes cometidos online".
Quanto a outras novas áreas emergentes de atuação, a PGR cita "um novo conceito de criminalidade rentável" que exige do MP "uma intervenção especializada focada em garantir que os agentes do crime são privados de todos os benefícios económicos obtidos".
Neste ponto, Lucília Gago destaca a implementação, no ano passado, de uma estratégia nacional de recuperação de ativos baseada num plano de ação de três pontos, entre eles a formação de magistrados e o aprofundar da cooperação no combate a este tipo de crimes.
Depois de um ano que ficou marcado pelo arranque do julgamento do caso Football Leaks, a procuradora-geral identifica também "a necessidade de aperfeiçoar mecanismos de deteção e investigação da corrupção no setor desportivo".
A fechar, Lucília Gago destaca que o MP deve exercer a "função que também é sua de guardião do futuro", citando as "inegáveis alterações climáticas, a defesa dos componentes ambientais como a água e a biodiversidade, o ar ou o solo".
"Os tempos de incerteza que vivenciamos não nos permitem que nos abstraiamos da consciência da finitude, designadamente dos bens ambientais naturais, nem do inegável impacto na Terra que a ação do Homem tem e das sequelas causadas pelos danos diretos provocados."
Neste âmbito, adianta, "existem áreas em que a ação do MP se revela, há muito, manifestamente profícua", mas outras em que ainda se "percorre um caminho que, apesar de longo e pleno de entropeços, se crê essencial", nomeadamente no que toca a questões urbanísticas com "repercussões não só no presente mas principalmente no futuro".