08 mar, 2023 - 20:08 • Lusa
O Ministério Público (MP) publicou um manual de boas práticas que pretende evitar interpretações diferentes sobre o que consubstancia crime de violência doméstica e assim contrariar as taxas de arquivamento e absolvição.
Num documento de 20 páginas, o MP afirma que "subsistem impasses interpretativos" na "adequada e correta identificação do(s) bem(ns) jurídico(s) tutelado(s) pela norma incriminadora" relativa à violência doméstica, nomeadamente o artigo 152.º do Código Penal.
"Não raras vezes, as decisões de arquivamento proferidas no inquérito, embora confirmem os indícios factuais, concluem que os factos não são "suficientemente graves", "não revelam intensidade", constituem "um ato isolado", sendo, por isso, inaptos a atingir a dignidade da pessoa humana, muitas vezes sem que na decisão sejam enunciadas as especificidades do caso concreto ou se atente nas características pessoais dos envolvidos", lê-se no enquadramento do documento.
O MP acrescenta que esta apreciação dos factos "fundamenta, expressa ou implicitamente, decisões de desqualificação jurídica dos factos para crimes de natureza semi-pública ou particular e, consequentemente decisões de arquivamento".
A nota explica ainda que a decisão de desqualificação jurídica "determina decisões de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, nas quais a vítima, por não ser assistente, não tem qualquer participação, sendo, quase sempre, surpreendida com decisão que apenas envolveu a tomada de posição de um dos sujeitos processuais - a pessoa agressora".
"É, assim, patente a inexistência de uniformidade decisória do Ministério Público, com necessário e potencial impacto nos índices estatísticos de arquivamento e, de igual modo, nas taxas anuais de absolvição", conclui a nota.
O documento aponta para a rejeição e valoração de conceitos como intensidade, reiteração, ato isolado ou gravidade, pedindo aos procuradores um "olhar rigoroso e atento" que "liminarmente se distancie" destes conceitos e que considerem como "desadequadas, desatualizadas e de potencial incompreensibilidade face ao fenómeno as posições que, isoladamente ou em complemento de outras considerações, reconduzem, em exclusivo, como critério diferenciador e de triagem, a dignidade da pessoa humana".
A nota do MP aponta que as boas práticas no âmbito dos crimes de violência doméstica são as que seguem uma interpretação segundo a qual "o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos bens jurídicos tutelados pelos diversos ilícitos típicos que o podem preenche".
"Constitui, pois, boa prática interpretativa o entendimento segundo o qual o bem jurídico a proteger está também intimamente relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico, e ainda em todas as relações de confiança tuteladas pela norma incriminadora", acrescenta o MP.
A este propósito, a nota refere, por exemplo, que um murro desferido num contexto de uma prova desportiva entre estranhos que previsivelmente não voltarão a ter qualquer tipo de contacto entre si não pode ser valorizado da mesma forma que um murro desferido num contexto doméstico, de ambiente familiar, onde o ato tem o potencial de "abalar as bases de confiança em que se funda aquela relação familiar ou a convivência doméstica".
Uma agressão física em contexto doméstico "semeia o medo, a desconfiança, a insegurança, sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo" e pode "abalar irremediavelmente a confiança da vítima no seu agressor", escreve o MP, que acrescenta que esta é uma "específica dimensão" que só tem enquadramento jurídico na norma legal relativa à violência doméstica.
A nota indica ainda que "para o exercício responsável e eficaz das atribuições do MP enquanto titular da ação penal, constitui boa prática de atuação funcional a pronúncia expressa, face ao caso concreto, dos fundamentos de facto e de direito que determinam a desqualificação dos indícios pelo crime de violência doméstica e a integração da factualidade noutros tipos penais".