03 out, 2023 - 16:51 • Alexandre Abrantes Neves
A rotina de José Ramos pouco muda de há 48 anos: levanta-se ainda de madrugada, cruza a ponte sobre o Tejo e, pelas oito da manhã, roda a chave da mercearia de que é proprietário na freguesia da Estrela, em Lisboa. “É uma vida”, conta-nos, enquanto olha com emoção para as prateleiras que montou com a mulher, Fernanda. No final de novembro, estas paredes vão ficar vazias: todas as frações do número 5 da Rua da Costa vão ter de ser desocupadas. A razão? As obras de extensão da linha vermelha do metro, desde São Sebastião até Alcântara.
“Quando recebi a carta, no final de agosto, nem queria acreditar. Deram-nos até 30 de novembro para sair. Apenas três meses para desocuparmos tudo, arranjar uma casa”, explica-nos, com a carta na mão.
Por 58 metros quadrados, o Metropolitano ofereceu-lhe pouco mais de 160 mil euros, valor muito abaixo do preço de mercado: “com os preços da habitação de hoje em dia, uma loja no centro de Lisboa não pode valer tão pouco”.
Apesar de tudo, José não tem vontade de reabrir o negócio noutro lugar. Nunca lhe “passou pela cabeça” deixar o negócio desta forma, mas o pouco dinheiro da indemnização, a juntar às burocracias, fazem-no sentenciar: “aos 70 anos, não tenho força já”.
Uns andares acima, encontramos António Gomes. Tem 56 anos e há 27 anos que vive na Rua da Costa. É proprietário de um T3 reabilitado com terraço, onde vive com a mulher e a filha. Sobre a indemnização do metro — pouco mais de 300 mil euros para 147 metros quadrados —, António deixa um desafio ao Metropolitano: “Gostava que me apresentassem uma casa com três assoalhadas, na Estrela, que custe 300 mil euros. Só uma. É impossível, não existe”.
Para classificar o método de cálculo das indemnizações utilizado pelo Metropolitano, António recorre a um provérbio: “começaram a casa pelo telhado”. Apesar de as indemnizações terem sido comunicadas no final de agosto, os peritos designados pelo Tribunal da Relação de Lisboa só visitaram as frações na última semana de setembro. António Gomes fala em imoralidade.
“Sabemos que isto ocorreu por causa da urgência da expropriação e da Declaração de Utilidade Pública [concedido pelo despacho 7741/2023, publicado a 26 de julho], mas estamos a falar de pessoas que trabalham e moram aqui desde sempre. Isto faz algum sentido? Não vale tudo”, critica.
Perante os valores baixos das indemnizações, António não hesitou: juntou os vizinhos todos, contrataram advogados e apresentaram contrapropostas para cada uma das frações.
“As indemnizações nas contrapropostas são, na sua maioria, o dobro daquelas que nos foram apresentados pelo Metropolitano. Os valores que apresentamos foram calculados ou com recurso a avaliadoras independentes e certificados ou com o valor mediano das vendas por metro quadrado divulgado pelo INE que, no caso da freguesia da Estrela, é de 4.588€/m2”, explica.
Umas portas à frente, Maria Dalila Esteves cumprimenta-nos com um tímido “boa tarde”. Veio de Trás-os-Montes para Lisboa há mais de 30 anos e abriu com o marido o restaurante onde nos recebe. Na década de 1990, a Tasca dos Esteves chegou a servir mais de 200 doses de pernil assado por dia. “Pessoas de Fátima diziam-nos que faziam a viagem só pelo nosso pernil!”, conta-nos entre risos tímidos, enquanto o olhar nostálgico percorre o restaurante.
O sucesso do estabelecimento permitiu-lhe fazer um pé-de-meia, comprar o prédio do lado com cinco apartamentos e remodelá-lo de alto a baixo. Anos de trabalho e de esforço que, diz Maria Dalila, vão ser-lhe retirados à força: “Querem obrigar-me a deixar de trabalhar. Se eu ainda estiver capaz, porque é que não hei de trabalhar?”.
Pelas seis frações, o metro oferece-lhe pouco mais de 800 mil euros. Valor que Maria Dalila sabe que “dá para sobreviver”, mas que não lhe permite reabrir o negócio e reaver o património noutro lugar.
“Fico sem trabalho e sem casa, de um dia para o outro. E o que é que eu faço à mobília e a tudo o que tenho aqui? Ainda tenho de arrendar um armazém? As soluções que nos apresentam são poucas”, queixa-se, enquanto nos mostra o despacho de julho, que define a urgência das expropriações e a utilidade pública da obra.
Maria Dalila não se conforma. “Passámos a vida toda a poupar para uma velhice mais confortável e agora tudo pode desaparecer. Claro que sobrevivemos com a reforma, mas esforçámo-nos para mais”.
Maria João Silva arrendou casa no mesmo bairro há 10 anos. Vinda da Lapa com o marido, encontrou ali a conjugação perfeita: uma casa com boas áreas, perto da escola onde trabalha como assistente operacional e “um sentimento de bairro da Lisboa do antigamente”.
Vai receber 40 mil euros de indemnização, o que não apaga “a tristeza de abandonar a casa que uma pessoa escolhe como sua”, mas que lhe dá uma “boa almofada para procurar uma alternativa”.
Na sala de estar onde nos recebe, está acompanhada da sogra, com mais de 90 anos e com dificuldades de mobilidade e de audição. “Está tudo bem?”, pergunta a idosa. A resposta de Maria João é rápida, mas nervosa: “Não se passa nada, são uns senhores amigos” — ainda não lhe contaram a notícia, para a protegerem. Maria João mostra-se disposta a mudar para onde for preciso, mas a sua maior preocupação é mesmo a sogra: teme o seu desenraizamento.
“Tem aqui o médico de família e um familiar trata dela aqui em casa quando estamos fora. Se formos para 20 ou 30 quilómetros daqui, não sei como vamos gerir tudo isto”, explica-nos, antes de a campainha tocar. É o “senhor Zé da mercearia” — traz-lhe as compras do dia. Um costume de típico bairro lisboeta de que terá, provavelmente, de se desabituar em breve.