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5.º Congresso dos Jornalistas. "Temos de saber quem controla os media"

17 jan, 2024 - 06:30 • Ana Catarina André

Pedro Coelho, presidente da comissão organizadora do 5º Congresso dos Jornalistas, defende que é preciso repensar a legislação que regula o jornalismo. Alerta para o impacto das "fake news" e defende que, para ultrapassar a crise no setor, é preciso tornar o exercício da profissão verdadeiramente distintivo.

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Começa esta quinta-feira, dia 18, o 5.º Congresso dos Jornalistas. Em entrevista à Renascença, o presidente da comissão organizadora, Pedro Coelho, pede maior transparência no setor, nomeadamente no que diz respeito aos proprietários dos grupos de media.

Pedro Coelho critica os jornalistas comentadores, afirmando que deviam "repensar a contribuição que estão a dar ao serviço público que lhes é exigida".

Este congresso realiza-se num contexto de particular crise no setor, com o emagrecimento das redações, a precariedade das condições de trabalho, as dificuldades no financiamento, problemas que ganharam maior visibilidade pública com a atual situação no grupo Global Media. Que tipo de soluções pode o congresso trazer para que este cenário comece a inverter-se?

O congresso não vai produzir nenhum milagre, mas acho que, pelo menos, é o lugar do encontro, da frontalidade e da discussão. Estamos há sete anos sem congresso e, em 2017, quando aconteceu o IV congresso, não estávamos no estado em que estamos. Batemos no fundo. O edifício jornalístico desabou e temos de o reerguer, peça a peça.

É claro que o congresso não vai reerguer um edifício inteiro. Aquilo que pode e deve fazer é lançar as bases do novo edifício. O edifício desabou do ponto de vista da sustentabilidade económica. Se o jornalismo durante 200 anos se aguentou a viver à custa da publicidade, e se esse dilema entre servir os interesses particulares das empresas que anunciam no jornalismo e o jornalismo que deve servir o interesse geral foi resolvido, agora, chegou o momento de salvarmos o jornalismo, respeitando o quadro de valores [da profissão], mas já sem essa sustentabilidade que tivemos até aqui. Sabemos isso há 20 anos, porque desde a viragem do século o modelo de negócio começou a mudar. Agora, mudou de facto. Não podemos acreditar que o capitalismo por ele próprio vai conseguir salvar o jornalismo. O jornalismo é um bem público e nós, jornalistas, temos de ser os primeiros a encontrar o caminho para sairmos do buraco onde nos colocamos, mas, sobretudo, onde muitos à nossa volta acabaram por nos colocar.

De acordo com o inquérito do sindicato de jornalistas divulgado em 2023, a remuneração média líquida dos jornalistas no ativo é de 1.225 euros. É possível fazer bom jornalismo com remunerações tão baixas? É este o principal fator de erosão da profissão ou, pelo menos, um sinal disso?

Quem está no jornalismo não está para ganhar muito dinheiro. Isso é um facto. Há outro estudo que vamos divulgar no congresso feito por uma rede interuniversitária de académicos em que ficamos a perceber que, apesar de tudo, os jornalistas não desistem. É aquele velho bichinho que nos liga diretamente a esta profissão. Essa paixão é à prova de bala, porque, apesar de tudo, os jornalistas resistem e querem continuar. Ora, isto diz muito sobre o potencial que transportamos. Os que aqui estão, os que resistem, resistem porque querem. Não temos é que sofrer como sofremos - e não sou eu quem sofre, que já estou numa fase muito madura da carreira. São sobretudo os mais jovens, aqueles que estão a começar.

O estudo do Sindicato dos Jornalistas e da Casa da Imprensa apontava para estes 1.225 euros de média de salário, mas abaixo disso há muita gente. São aqueles que partilham casa, que não conseguem ter autonomia financeira. São esses todos que o jornalismo tem dentro e que querem muito estar cá, mas fazem-no em condições absolutamente calamitosas. Não faz sentido que um jornalista tenha um salário indigno. A dignidade de uma profissão começa exatamente no salário. Mais de 80% dos jornalistas são licenciados ou têm formação universitária. Alguns têm mestrado e, mais do que em 2017, têm doutoramento. Enquanto tivermos baixíssimos salários, o jornalismo não se consegue autonomizar. Ninguém veio para ser rico, mas também ninguém veio para ser ostensivamente pobre.

Falando concretamente da questão do financiamento, consideras que a fragilização do setor deve ser suplantada com apoios do Estado? De que forma é que isso poderia acontecer não pondo em causa a liberdade necessária ao exercício da profissão?

Acho que essa vai ser, no congresso, a questão mais fraturante. É muito difícil conseguirmos chegar a consenso sobre essa matéria, mas acho que temos de encontrar um caminho sobre o modelo de financiamento do jornalismo. Sabemos que o capitalismo não tem condições para sustentar o jornalismo. Mas, atenção: não tenho nada contra o capitalismo, absolutamente nada. Gerar lucro é saudável. Agora, não podemos pedir ao jornalismo que tenha a força de gerar lucro financeiro porque na base do jornalismo não está o lucro de uns quantos proprietários de meios de comunicação social, mas uma necessidade urgente de gerar lucro social. É disso que estamos verdadeiramente a falar. Esta vontade e necessidade de servirmos e de trabalharmos para o público transforma o jornalismo numa profissão que é claramente um bem público que teremos de preservar.

Temos de apelar à sociedade civil para que nos ajude a preservar o jornalismo. Quando se fala em financiamento público, vem-nos à memória uma série de situações complexas, como a interferência direta do poder político. Isso é qualquer coisa que um jornalista despreza e é disso que verdadeiramente fugimos. Não queremos nem gostaríamos de estar dependentes de ninguém. O que reclamamos do Estado e da sociedade civil em concreto? Um financiamento anónimo. É disso que estamos a falar e esse financiamento pode vir sobre as mais diversas formas. Não tem de haver uma carta fechada. Acho, aliás, que o congresso pode e vai debater [o tema]. Há um conjunto de comunicações sobre financiamento em que vão ser apresentadas propostas muito interessantes. Não podemos é fechar a discussão em dois ou três cenários. Podemos ter vários cenários. O que não podemos é continuar no estado em que nos encontramos.

"O edifício desabou do ponto de vista da sustentabilidade económica"

A questão não será também saber se sociedade civil está, ela própria, interessada em contribuir para o jornalismo?

Se calhar, não está. Não podemos obrigar ninguém. As pessoas nunca viveram verdadeiramente sem jornalismo e habituamo-nos à velha máxima de que o jornalismo é um dos pilares da democracia. Provavelmente, não está a ser, porque a democracia, ela própria, está a degradar-se. Se estabelecermos uma relação de causa-efeito entre a degradação da democracia e a do jornalismo, descobrimos pontos de conectividade. Portanto, aquilo que estamos a perceber é que, quando uma se degrada, a outra também.

O que é que precisamos para uma sociedade mais forte, para uma democracia mais saudável? Precisamos de um jornalismo ele próprio mais forte e também mais saudável. Estamos a assistir ao desabar do edifício. Assistimos em silêncio. Não podemos fazer isso. Gosto muito de dizer esta frase: acho que há um antes e um depois do congresso. Não é para produzirmos um milagre. É para olharmos de frente para o estado da arte e encontrarmos em conjunto soluções. Não vejo outro caminho, sinceramente.

As áreas tecnológica e empresarial, em diálogo com os jornalistas, com as empresas de comunicação, podem ter um contributo para inverter esta crise?

Sim. Creio, aliás, que o jornalismo e a tecnologia devem caminhar a par. Não há jornalismo sem tecnologia. O que me preocupa é quando a tecnologia toma conta do jornalismo e inverte ou perverte o seu quadro de valores. E quando os empresários criam a ideia, a ilusão de que, com a tecnologia, conseguem suavizar o custo do jornalismo. O jornalismo tem custos. Não são só os nossos salários. Fazer bom jornalismo tem custos, mas também tem retorno. Também pode ter retorno financeiro. O jornalismo de qualidade já o provou.

Noutros países, sobretudo...

E também em Portugal. Obviamente, se me perguntarem se temos um jornalismo de qualidade, absolutamente musculado, definido e consolidado, infelizmente, não temos. Mas sempre que há expressões de jornalismo de qualidade em Portugal, sabemos que resultam do ponto de vista da credibilidade do jornalista, da credibilidade do órgão de comunicação social para o qual o trabalha. Essa credibilidade gera receita. Isso também está absolutamente provado. Basta analisar os relatórios do Reuters Institute para percebermos que assim é. Embora trabalhe numa empresa comercial, a minha preocupação não é gerar receita financeira, mas tentar fazer, o melhor possível, um jornalismo de qualidade para que se torne distintivo. É esse o propósito. Há tanta informação, tanta comunicação na rede, alguma vinda de interesses absolutamente subterrâneos, que aquilo que verdadeiramente interessa é percebermos onde é que o jornalismo se torna distintivo para que as pessoas acreditem.

Há uma desilusão com o jornalismo...

Não podemos enterrar a cabeça na areia, dizer que somos muito bons e não admitirmos que nos apontem os erros. Falhamos todos os dias e falhamos muito, mas a maior parte dos erros não é só da nossa responsabilidade. Também têm responsabilidades externas. Agora, por exemplo, temos de analisar o grande problema do Global Media Group. A montante há uma questão absolutamente complexa. Como é possível que a legislação portuguesa permita que empresários que não percebem nada [da área] invistam no jornalismo? Com que intenção é que esta gente está a pôr dinheiro no jornalismo? Não só não sabem o que é e para que serve o jornalismo, como a única coisa a que estão habituados é a tirar lucro para eles próprios. Ora, o jornalismo não é uma atividade lucrativa. Uma pessoa que queira ganhar dinheiro vai investir no jornalismo porquê? Não invista. Vá para outra área qualquer.

A par da questão dos interesses particulares de investidores, a crise no grupo Global Media veio alertar para a questão da propriedade dos media, no caso para as consequências que pode ter a possibilidade de um fundo deter um grupo de comunicação. A ERC deveria ter aqui uma mão mais forte?

O problema é que a ERC também se queixa. Acho que com razão. Esta nova gestão parece estar muito preocupada e muito interessada em contribuir para a solução e não para agravar o problema. Creio que a ERC aqui também está limitada do ponto de vista legal. É todo o edifício legal que regula o jornalismo que tem de ser repensado. Do ponto de vista legal, não é absolutamente impossível que esta situação ocorra, ainda que a ERC esteja, finalmente, e é importante que se diga e que se sublinhe, interessada em investigar. Temos aqui, pela primeira vez em muitos anos, uma entidade reguladora que parece estar disposta a querer exercer o seu papel. Já é um caminho. Nesse sentido, temos de lhe dar o benefício da dúvida.

"Ninguém veio para ser rico, mas também ninguém veio para ser ostensivamente pobre"

Defendes, então, que devia haver maior transparência na propriedade dos grupos de comunicação e, eventualmente, até a proibição de que fundos possam deter meios de comunicação?

Acho que a transparência nesta área é absolutamente obrigatória. Temos de saber quem é que controla os media. Temos de saber mesmo quem é que são as entidades, uma por uma, que percentagem têm e fazer até um trabalho de investigação jornalística à volta de todos os meios de comunicação social para perceber quem é que está por detrás de tudo isto. Quais são os interesses que estão por trás? Quem quer investir num órgão de comunicação social jornalístico para perder dinheiro, alguma intenção tem de ter. Nós também gostávamos de saber qual é essa intenção. Que isso fique claro. É o mínimo que pedimos e exigimos. Se pensarmos nos problemas do jornalismo, se calhar eles começam exatamente na definição da propriedade dos media e na transparência.

A proliferação de comentadores televisivos, alguns dos quais jornalistas, e também de outras pessoas aparentemente pouco especialistas nos temas que abordam, a sucessão de diretos em antena, muitos dos quais demasiado longos, que não permitem que o jornalista exerça o seu papel de mediador, são sinais de que também os jornalistas contribuem para a destruição do seu próprio trabalho?

São, claramente. Não tenho dúvidas. Claro que a entrada em cena dos comentadores nos canais de informação 24 horas tem uma razão. É outra vez o mercado que está por trás dessa decisão. A palavra é barata. Fazer uma reportagem é bastante mais caro do que contratar uns quantos que sabem mais ou menos falar, têm duas ou três ideias e até uma imagem mais ou menos agradável. Só isso é quanto basta, na maior parte dos casos, para que se lhes dê direito à palavra. Mas, claro, a palavra só não é jornalismo, muito menos desta forma.

Creio que há um conjunto diverso de jornalistas que estão mais sintonizados com a tarefa do comentário do que propriamente com a abordagem jornalística das temáticas e que deveriam, eles próprios, repensar a contribuição que estão a dar ao serviço público que lhes é exigido. Tenho sérias dúvidas de que o jornalista se deva, de repente, transformar num comentador. Ainda assim, o comentário é um género jornalístico que prezo. Só que o comentário, enquanto género jornalístico, exige do jornalista um trabalho muito maturado, muito complexo de investigação, de apreensão e descodificação da realidade. Só assim, com todos esses dados, o jornalista está habilitado a comentar determinadas temáticas.

ma boa parte dos jornalistas que faz comentário fá-lo sabendo pouco mais do que a maioria dos outros todos e isso não faz para mim grande sentido. Aqui reside, provavelmente, um dos problemas do jornalismo. Além disso, a palavra é barata e tem audiência. É curioso que as pessoas consumam com muita facilidade as coisas que lhes dão. Se não lhes derem melhor, habituam-se.

Estes sinais de autodestruição passam também pelos direitos demasiado longos?

Sim, diretos para encher, como dizemos na gíria televisiva. Em 1998, Inácio Ramonet publicou um livro muito interessante sobre a crise do jornalismo, em que falava num conceito que prezo muito: o de censura invisível que está associado exatamente aos direitos televisivos. Ele entendia que o direto televisivo se transformava ou podia ser descrito como uma censura invisível, porque o jornalista ficava agarrado ao cabo, impossibilitado de falar com fontes, de fazer reportagem. Isto é a forma mais invisível de censura, no sentido em que o jornalista deixa de fazer o que lhe compete para estar permanentemente a debitar informação que outros lhe arranjam e lhe levam.

Falando dos ouvintes, leitores, telespectadores, parece-te que estão conscientes da relevância do trabalho jornalístico, em particular os jovens que cresceram no mundo digital, para quem tudo é imediato e rápido?

É muito difícil termos um conhecimento claro dessa realidade. Posso dar a minha perceção, porque sou simultaneamente jornalista e professor universitário. Trabalho com uma camada que está muito desperta para o jornalismo, não tão desperta hoje quanto há 20 anos, quando comecei a dar aulas. Nessa altura, tínhamos várias variantes no curso de Ciências da Comunicação e o jornalismo era de longe a mais pretendida. Isso hoje inverteu-se. A vertente mais pretendida é a de comunicação estratégica, ou seja, é a vertente que forma profissionais de comunicação que vão salvaguardar o interesse particular e não o interesse geral. Está a deixar de ser interessante salvaguardar o interesse geral, porque as pessoas também já perceberam que ou estão muito apaixonadas por isto, vão à luta e entregam-se, ou então mais vale defender o interesse particular, porque o salário é muito mais elevado, as preocupações são provavelmente menores. Enquanto aqui, [no jornalismo], uma boa parte dos que chegam, ficam muito tempo à procura de emprego e sabemos que a primeira década é calamitosa para quem escolhe esta profissão.

"Parece que as pessoas convivem melhor com a mentira do que com a verdade"

Perante a atual crise, o que dizes aos teus alunos?

Que, ainda assim, não percam a esperança. Também lhes digo que o jornalismo tem de sofrer alterações profundas e começo a aperceber-me que isso é muito difícil apenas com aqueles que cá estão. Acredito muito nas novas gerações, naquela permanente dúvida, naquela vontade de mudar que os jovens ainda conservam e na agilidade que os caracteriza. Digo-lhes sempre a mesma coisa: não vão conseguir vencer na profissão se fizerem igual aos outros que já lá estão fazem, têm de fazer diferente, respeitando o quadro de valores. É esta diferença que torna o jornalismo distintivo que pode ser uma ponte para pensarmos no futuro da profissão.

Tem-se feito algum trabalho em Portugal na área da literacia mediática, com a criação de uma associação nesta área e a realização de ações de formação. O governo aprovou também o ano passado as linhas orientadoras do plano nacional de literacia mediática. São medidas suficientes?

Países como os Estados Unidos, por exemplo, começam a trabalhar a disciplina de literacia mediática no ensino básico. Hoje, temos [em Portugal] mais do que tínhamos há sete anos, quando este caminho da literacia mediática começou a seguir ao congresso de 2017. Se é suficiente? Não. Tanto que estamos a assistir a um desligamento forte dos jovens relativamente ao jornalismo. Não tenho números sobre essa matéria, mas a minha perceção aponta diretamente nesse sentido. Os jovens não estão absolutamente sintonizados com a necessidade do jornalismo e, portanto, é importante que a literacia mediática também saia em defesa do jornalismo, desde logo orientando, criando pistas de descodificação da mensagem, que funciona enquanto alerta. É fundamental que as pessoas, desde logo, saibam ler as mensagens e perceber o que verdadeiramente significam, as mensagens e o contexto de produção dessas mensagens.

Outro aspeto tem a ver com a distinção do que é ou não informação jornalística...

Aí, muito sinceramente, a responsabilidade também é dos jornalistas. Nós próprios contribuímos para a confusão. Quando temos um conjunto de pessoas com carteira profissional que a única coisa que verdadeiramente fazem na vida é andar a promover hotéis, restaurantes e situações mais de "lifestyle" do propriamente de jornalismo, as pessoas confundem-se. Se trabalham todos na mesma empresa, se uns só fazem isto, e se outros outra coisa, mas todos têm carteira profissional, as pessoas não têm capacidade, de forma muito objetiva e clara, de perceber o que distingue, afinal, o jornalismo. Há um conjunto de premissas éticas que o jornalista tem de cumprir. Não pode andar a promover um produto e, simultaneamente, ter carteira profissional. Não pode.

Muitas vezes, ouvimos também as pessoas dizerem que viram determinada informação na rede social x ou y, sem se questionarem de onde é que vem...

Claro. As pessoas consomem muito por partilha. Se um amigo manda determinada matéria, independentemente da fonte, a capacidade de adesão a essa matéria é muito, muito elevada. Parece que as pessoas convivem melhor com a mentira do que com a verdade. Isso dizem-nos os estudos. As pessoas cada vez mais apreciam a mentira, porque a mentira é escandalosa. É atrativa. A realidade às vezes não é transformável em qualquer coisa atrativa. É o que é. O jornalismo que lida diretamente com a realidade não consegue ser tão atrativo provavelmente quanto a mentira. O que é fundamental aqui é tornarmos o jornalismo verdadeiramente distintivo, porque se estamos a misturar o jornalismo com todas as outras formas de comunicação, então aí as pessoas confundem-se naturalmente.

"O jornalismo tem de sofrer alterações profundas"

O 5º Congresso de jornalistas tem uma especial preocupação com o jornalismo de proximidade. A organização realizou inclusive um périplo nacional em que ouviu os profissionais que trabalham fora dos grandes centros urbanos. Estamos também a assistir a desertos de notícias em várias regiões do país. Que soluções há para inverter este cenário?

Quando olhamos para a realidade ficamos alarmados. Fomos a todas as regiões do país num périplo que durou entre abril e julho de 2023. Se começarmos a descascar a realidade nos territórios de proximidade, descobrimos coisas perfeitamente absurdas. Dou sempre este exemplo e não me canso de o repetir: entrámos em contacto com uma jovem jornalista de uma rádio local que de manhã era jornalista, fazia notícias, e à tarde, para não perder aquele posto de trabalho, passava a roupa a ferro em casa do dono da rádio. Isto é verdadeiramente absurdo.

Também entrámos em contato com outra jovem que tinha meio salário numa rádio local, mas em cada dia trabalhava dois dias, apesar de estar contratada a meio tempo. O que assistimos nos territórios de proximidade é verdadeiramente indescritível. Os graus de desmotivação e de precariedade são muito maiores. Os empresários sem escrúpulos são às pazadas, desculpa a expressão. É tudo muito, muito mau. Como é que contrariamos esta situação? Nestes territórios não é difícil separar o trigo do joio.

Há um conjunto de meios de comunicação social jornalísticos que necessariamente têm de ser apoiados, mas há uma infinidade de outros que não podem ser apoiados. Há um conjunto de plataformas que agora existem nos territórios de proximidade, que apenas servem para sacar publicidade e que vão disputar o fragilíssimo mercado a preços muito mais baratos, porque não têm jornalistas. Têm pessoas que escrevem umas coisas agradáveis, uma boa parte delas roubadas a outros órgãos de comunicação social, outras que são puras mentiras. Foi o que me foi descrito ao longo deste longo périplo que fomos fazendo. Outra coisa que também está a matar o jornalismo de proximidade são as câmaras municipais, que contrataram gabinetes de comunicação enormes, com muita gente que foram buscar, curiosamente, aos jornais e às rádios locais. Porquê? Porque assim não têm escrutínio. Há um vazio do ponto de vista informativo. Os órgãos jornalísticos existem, não desapareceram, mas deixaram de cumprir a função porque não têm quem verdadeiramente a possa cumprir.

Esta questão podia resolver-se com critérios mais apertados no acesso à carteira profissional de jornalista?

Os critérios de atribuição da carteira até estão bem definidos. O problema é que nos territórios de proximidade é muito comum alguém pedir o estatuto de equiparado. É um estatuto que existe, em que a Comissão da Carteira se vê quase manietada. Tem de atribuí-lo, porque já existe e há que renová-lo. Se não houver renovação, o destinatário da recusa vai para tribunal e a Comissão da Carteira não tem meios, nem capacidade para poder acompanhar o processo judicial e acaba por perder na maior parte dos casos. O edifício legal tem de ser todo reestruturado. Isto não pode acontecer: alguém que não é jornalista, que pede o estatuto equiparado, funda um órgão de comunicação social que regista na ERC. A ERC não tem forma de não registar. Andamos aqui neste círculo vicioso que nos territórios de proximidade está a ser absolutamente lesivo para o jornalismo.

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  • Atento
    17 jan, 2024 Leça da Palmeira, Matosinhos 10:43
    TV e Rádio é tudo XUXA ... agora queixam-se ... VIVA A INTERNET ...

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