02 mar, 2024 - 09:00 • Redação
Batem-se cartas na hora dourada de inverno. O jardim do Marquês, no Porto, já está a ficar com uma aragem fresca que desafia a resistência da mesa improvisada, forrada a papelão. Quem passa aqui por esta hora dá com os olhos na vida pós-laboral, longe de calma, porque o jogo vive-se a alto e bom som.
Para trocar uma palavrinha ou outra com António, é preciso apanhá-lo na curva. E ter talvez uma permissãozinha. Mal vê alguém a aproximar atira os dois indicadores já bem treinados aos ouvidos para indicar que, para os lados de António Almeida, 79, ouvir é uma tarefa um tanto ou quanto complicada.
“Não ouço”. Seja quem for, são estas as primeiras duas palavras que lança de rajada. É assim que costuma abordar e cumprimentar com quem se cruza. “Vou no autocarro e a pessoa começa a falar para mim: 'olhe, desculpe lá, mas eu não percebo'.”
A audição é um sentido frágil e, muitas vezes, ignorado. Por quem mal ouve, pelos outros e até... pelos patrões. Sempre metido nas engenhocas e maquinarias, António punha de parte qualquer preocupação com os ouvidos. Deixava-os estar. “Era um serralheiro civil, mas, como se costuma dizer, tinha mil e uma profissão."
Os ruídos já faziam parte da rotina. “Lá está, eu reconhecia que ouvia mal a trabalhar e o meu posto de saúde mandou-me a um especialista de otorrino." Lá lhe receitaram um “papelzinho” para entregar na empresa de construção. Era um dito a recomendar usar uns auscultadores, uns protetores, porque andava sempre para trás e para a frente com uma rebarbadora, a cortar madeiras.
Chegava a estar uma semana inteira com uma motosserra a cortar armação de uma fábrica velha e a nivelar pavimentos e estruturas, sem quaisquer cuidados. “Está a ver? É isso que me prejudicava."
"Enquanto não estava bem nivelado, era sempre pi-pi-pi-pi e eu a ouvir aquele barulho”, recorda.
Com um atestado nas mãos, o gerente da empresa “não ligou nenhuma”. Nem ele próprio, quanto mais os colegas! Apesar disso, às vezes até dava uma de conselheiro e, quando os ruídos eram mais fortes, dizia: “Ó pá, ponde os aparelhos”. Mas mais valia não dizer nada: António sabe que nem ele era exemplo.
“Como era novo, queria lá saber. Quando a gente é nova, quer é trabalhar e não me convencia que os ruídos faziam mal, mas faziam”, lamenta.
Ano após ano, viu-se comprometido com um trabalho que lhe levou a uma doença profissional. A tentar remediar, comprou as primeiras próteses. Tinha 50 anos. “Ora, reformei-me com 65... Ainda trabalhava e já usava aparelhos". Mas já era tarde. “O problema é esse..."
Mesmo assim, teimoso, as primeiras próteses que comprou estiveram “lá para a gaveta muito tempo". Mas cada vez mais pessoas apertavam com ele e o incómodo nos ouvidos também. Sem parar. “Nunca mais me esquece. Comecei a ouvir cada vez pior e pensei: 'não, não, tenho de usar as próteses'."
Há quase 30 anos a andar por “médicos dos ouvidos”, tem visto e ouvido de tudo. Se bem que o primeiro encontro foi mediado pela médica de família, desde aí teve de se "desenrascar". Deitou para trás das costas o seu destino que sempre foi adiando e decidiu deixar-se enamorar pelos novos companheiros diários: os aparelhos auditivos. Mal sabia que esta relação mais ou menos serena seria sol de pouca dura.
A partir do momento em que começou a correr os centros auditivos do Grande Porto, percebeu que convém ter cautela no momento de compra. António vê agora a possibilidade de rastreio gratuito como um disfarce que encobre outros propósitos e não necessariamente uma preocupação com a saúde.
Certas lojas, para o antigo serralheiro, vêm-no como cliente em vez de doente. Vê-se consolado com as novas tecnologias, mas não consegue esconder que está cada vez mais insatisfeito com o serviço destes estabelecimentos. Desconfia. E não é o único.
Médicos audiologistas, otorrinolaringologistas e terapeutas da fala reconhecem que há uma falta de fiscalização nos rastreios e vendas destes dispositivos médicos. Para um exame correto e legal, é preciso ter os especialistas certos e credenciados para a consulta e eventual compra. Mas nem sempre isso acontece.
“Aqui, há um claro negócio que tem de ser bem pago... E normalmente é bem pago". O técnico principal de audiologia no Centro Hospitar e Universitário de Coimbra Jorge Humberto Martins garante haver uma despreocupação generalizada sobre este setor da saúde.
“Não há seriedade", lamenta. “Amanhã, se alguém quiser, pode trabalhar numa destas casas e pode estar a pôr aparelhos. É a realidade portuguesa".
Em Portugal, estima-se que 1,6 milhões de portugueses tenha hipoacusia - o termo técnico para quem tem dificuldades auditivas - e desses apenas 2,7% usa prótese, segundo o estudo do Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico (2015).
Entre as pessoas com mais de 65 anos, 21,8% tem perda auditiva e quase metade (49%) espera até dois anos para reabilitar os ouvidos, segundo um estudo das associações europeias Hearing Aid Professionals, Hard Hearing People e Hearing Instrument Manufacterers (2020).
A avaliação auditiva é um momento importante para aconselhar o tratamento mais apropriado. Quando são “vendedores de bata branca” sem qualquer tipo de habilitação ou competência médica a atender, analisar e fazer testes - os chamados audiogramas - arrisca-se a saúde dos utentes.
“Estamos a brincar com o assunto”, acusa, lembrando que os audiogramas determinam as frequências e os limites sonoros, ou seja, os sons mais graves e mais agudos que cada pessoa é capaz de ouvir.
“Há muitas empresas que não têm audiologistas. Têm vendedores. Outras têm tudo”, alega o diretor do serviço de otorrinolaringologia do Hospital Egas Moniz, Pedro Escada.
O otorrinolaringologista lembra um episódio com um doente que entrou no seu consultório com perda de audição ligeira e, “passado seis meses ou assim”, reapareceu com o problema aparentemente resolvido.
““Ó doutor, estava a ouvir mal e agora já ouço bem, porque tenho um aparelho auditivo'. Fui a verificar e ele tinha cera nos ouvidos", conta.
Sem profissionais de saúde adequados nos rastreios, perdem-se muitas etapas do exame e, por vezes, nem se espreitam os ouvidos. “Há casas onde existe o audiologista responsável que está em teletrabalho e valida à distância o audiograma”, critica Jorge Humberto.
“É uma forma muito simples de validar e até das próprias casas se protegerem para dizer 'não, não, estamos a fazer tudo direito”, mas depois vão ao computador enviar para um colega validar”, explica.
“Algum profissional de venda destes produtos decidiu vender-lhe duas próteses auditivas no valor de mais ou menos três mil euros em vez de lhe resolver a situação ao retirar a cera”, censura o otorrino.
O médico sugeriu e o doente reivindicou. “Tiveram vergonha. Devolveram o dinheiro e é uma firma altamente publicitada”, conta.
E não é preciso ir muito longe. Basta passar o Douro, ir a Santo Ovídeo, em Vila Nova de Gaia. Carlos França, com os seus 82 anos, ainda não tem dificuldade em ouvir, mas a mulher, Maria Inês, 80, tem e, por isso, conhece o mercado dos aparelhos auditivos
“É um verdadeiro negócio e andam sempre atrás de uma pessoa a tentar ganhar dinheiro”, conta, aconselhando a todos "cautela".
Todos os anos, a lista parece ser maior. Qualquer residente em Portugal que entra nos 60 preenche mais um tracinho para os telefonistas das linhas das “casas de audição”. Quem atende as chamadas, desarmado de informação, pode sentir-se pressionado.
“Ouve bem? Que idade tem?”. Agostinho Santos, 80, simula, impaciente, o “inquérito” que lhe fazem na rua e por telemóvel. “Já fui abordado várias vezes para me impingirem aparelhos de audição."
“Quanto é que ganha? Quanto é a sua reforma? Qual é o ordenado que entra em sua casa? Mas quanto é que ganha a sua mulher?", prossegue o relato. "Lá me deram a volta e caímos”, confessa.
Carlos também confirma esta persistência dos trabalhadores destes estabelecimentos. “Ah, isso de telefonar? Muitas vezes. Para ir aos auditivos, então nem se fala”, desaprova. “Mas digo-lhe já que não vou a mais lado nenhum. Andam sempre atrás de uma pessoa...".
Elvira Fonseca, 76, é mais uma dessas pessoas. “É um abuso. Quem precisa vai buscá-los”, desabafa, cansada de ser coagida.
De braço dado, as amigas Maria da Graça Pinto, 74, e Ana Maria Cordeiro, 76, comentam, a meio da tagarelice interrompida, a inconveniência destes funcionários. “Estou farta de dizer que não preciso e insistem sempre que é uma consulta grátis."
São “montes de telefonemas”. Às vezes, duas tentativas no mesmo dia: “Uma rapariga e depois um rapaz."
Certas marcas decidem mesmo apalpar terreno rondando jardins públicos. Acomodados nos banquinhos de madeira desgastados pelo tempo, cidadãos idosos são convidados, volta e meia, para consultórios ambulantes.
"É uma carrinha que está aqui, muitas vezes, no jardim”, relata Maria Júlia, 74, aposentada da função pública, Embora tenha apoio médico garantido, lá foi “para fazer a vontade ao funcionário” e ajudá-lo a completar o número de inquéritos pedidos pela empresa.
“Entrei por pena”, mas deixou-lhe logo o aviso: “Respondo-lhe a tudo, não me vão é andar a consumir sempre!”. Favor por favor, asseguraram-lhe com prontidão que iriam cumprir o pedido de Maria. E lá deu os seus dados.
Não tardou a desfazerem a promessa. “Até tive de bloquear o número no telemóvel."
“Já nem era falar. Diziam-me: 'amanhã tem consulta marcada às tantas horas'”, recorda.
A par da pressão, o otorrinolaringologista Pedro Escada acrescenta que os exames de audição são “feitos à pressa”.
“Muitas vezes, saem de uma consulta de otorrino com um exame de audição correto e essas pessoas que andam nas carrinhas pelo país fora conseguem convencê-las a comprar um aparelho auditivo de dois, três ou quatro mil euros”, condena.
“É uma prática pouco ética, ilegal e fraudulenta”, repreende o otorrino. É, por vezes, um despiste ao engano. “Vender aparelhos prejudica a boa prática", sentencia.
À procura de um dos amigos da sueca, António traz a reboque Fernando. Convencido de que ainda lhe faz companhia nas “aventuras” dos aparelhos, o antigo serralheiro atira-lhe os seus queixumes à espera de ser correspondido.
“Olha lá, esse chip que te meteram foi para ouvires melhor? Não me digas que para mim também dava”. Surpreendido, Fernando desfia-lhe toda a história de quando foi operado no Hospital São João. “Perguntaram-me: 'se metermos um chip?'. “Doutor, façam o que vocês quiserem. Metam um chip, olhe, meta aí um funil””, graceja.
“Até arrumou com as próteses, está a ver?”, reforça António, admirado. A verdade é que, antes, Fernando remediava também com uns aparelhos, mas via-se sempre atrapalhado e desconfortável. “Dei quatro mil por dois e tenho-os no carro”, conta.
“E eu em casa uns quantos”, diz António e o amigo ganha lanço para descarregar também.
““Temos de ligar para toda a gente', dizem... Mas são chatos. Ligam-me para casa, para o telemóvel, para tudo. “De quem é este número? Não conheço”, e penso “caraças, vou ligar”. Atendem. “Audição”. Trick. No vermelho. Desligo logo”, partilha Fernando.
“Sabe como são estas casas... Vendem como querem. É tudo à maneira deles”, queixa-se António. “Vou na rua e vejo próteses tão perfeitas, tão justinhas e discretas. Ou eu tenho azar ou...”.
Mas para além do lado estético destes dispositivos médicos, é ainda mais importante ser acompanhado pelos especialistas. Não basta ir à primeira consulta. Esta preocupação deve estar acima das engenharias e contornos de cada aparelho. Só com um aparelho bem ajustado é que se lá vai.
“A importância do rastreio não pode começar nem terminar no diagnóstico." O terapeuta da fala e terapeuta auditivo-verbal, Pedro Brás da Silva, 46, contesta os médicos que largam a mão dos doentes mal fazem a venda, porque é preciso adaptar, rever e acompanhar. No fundo, os profissionais tornam-se "alfaiates" e preparam o doente para o "mundo real e ruidoso."
E como se avaliam perdas auditivas? É um "trabalho formiguinha" de reabilitação partilhado entre audiologistas, otorrinos e terapeutas da fala. "Não conseguimos trabalhar sozinhos”, assegura o otorrino Pedro Escada.
“Temos de ter um casamento perfeito e boa comunicação", explica Brás da Silva, principalmente com o paciente. Partilhar conhecimentos e dúvidas. Mas, para isso, é preciso ouvir queixas e o paciente tem de ser transparente cada vez que volta ao gabinete.
“Eu costumo sempre dizer à pessoa: 'até colocar o aparelho, o trabalho é meu. Daí para a frente, o trabalho é nosso'”, sustenta o audiologista Jorge Humberto Martins. Não há cá nada de ter medo ou reservas ao pé do médico.
"Especialmente a população mais idosa não se queixa por uma questão de educação", partilha o audiologista. "Pensam que estão a dizer mal do meu trabalho."
“Vocês têm de dizer o que sentem." Jorge Humberto Martins tenta desmistificar para não criar confusões. “Se vos colocar uma pedrinha no sapato e estiver a magoar, só vão ficar mais confortáveis quando se queixarem e eu for lá tirá-la”, explica.
Vergonha à parte, o sucesso de uma intervenção auditiva não é definido apenas pela qualidade do equipamento. “A performance da prótese auditiva está dependente da acústica do espaço onde estivermos”, reforça o audiologista. A adaptação é sempre diferente, porque o paciente pode conviver continuadamente em ambientes ruidosos ou com muito eco.
A incapacidade pode ficar a meio do caminho da solução. Ora por falhas de diagnóstico, ora por falta de cuidado, ora por incapacidade de adaptação do organismo do doente, porque "o aparelho fundamental é o cérebro", clarifica Jorge Humberto Martins.
Metade dos portugueses (2,7% da população) que utilizam prótese auditiva diz continuar a ouvir mal, de acordo com o Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico (2015).
No entanto, os dados mais recentes dos Censos 2021, mesmo que por auto-análise, confirmam esta prevalência de incapacidade: "Com menores proporções, a dificuldade em ouvir, mesmo usando aparelho auditivo, e a comunicação com os outros foram apontados 2,8%."
Perdidas por estes labirintos, “recebemos pessoas que estão quase no fim de linha da sua perda de audição", lamenta o otorrino Pedro Escada.
Margarida Celeste dos Santos, 80, trabalhou num hospital e mesmo assim foi se esquivando ao diagnóstico. “Era uma cisma." Foi operada ao ouvido esquerdo e, assustada com os preços, deixou-se arrastar até ao inevitável.
Pela rua fora, arrastando os pés, vai Virgínia Pires, já com os seus 97. Afaga a mão de quem lhe troca uma palavra ou outra. Pelos seus afazeres e compras nas mercearias, já está acostumada, à falta de melhor, a ouvir com os olhos. Socorre-se aos lábios do outro para fazer as suas leituras. "Ouço metade das palavras, como se costuma dizer", normaliza.
Para além de uma consulta numa carrinha, Virgínia não voltou a ser avaliada. Tinha setenta e poucos quando comprou o primeiro aparelho auditivo que pouco ou nada ajuda. Não planeia comprar outro.
“Estava a ver se passava sem eles, mas, por acaso, os meus foram gratuitos. Como trabalhei em saúde...”, suspira Margarida. Já lá vão três anos e a antiga funcionária hospitalar só se arrepende de ter adiado esta decisão por mais de 20 anos. “Nunca quis, mas, graças a Deus, que ainda fui a tempo."
"Não interessa como é que vêm, interessa é que eles venham”, declara o audiologista Jorge Humberto Martins. Bastou-lhe o tormento e agora Margarida nem hesita para deixar o recado: “Quando ouvir mal, deve usá-los para não ir até ao fim."