02 mar, 2024 - 09:00 • Redação
A Deco - Associação de Defesa do Consumidor, recebe, anualmente, "250 a 300 queixas por ano” sobre a saúde auditiva, mas “não é um número real deste problema".
A diretora de comunicação da Deco, Rita Pinho Rodrigues, diz à Renascença que as pessoas "continuam a chegar cheios de dúvidas" e “sem saber se há razão para reclamar".
“Perguntam com alguma vergonha se 'o problema é meu ou é do
aparelho?'”, partilha a Rita Pinho Rodrigues.
Incertos se se trata de uma inadaptação ou se é por falta de qualidade do aparelho, os consumidores acabam por encostar os queixumes, os dispositivos médicos e o dinheiro que desembolsaram para comprá-los. E o número é, então, “abstrato” e “pouco expressivo".
“Há uma enorme preocupação e descontentamento por parte dos consumidores”, confessa a representante da Deco. E quantos destes casos são resolvidos? “Não temos dados nem acompanhamos esses processos."
O organismo de defesa do consumidor segue este assunto há 20 anos e tem acompanhado o “arrastar” de soluções e a insatisfação dos doentes. Reportam uma “evolução positiva” da tecnologia que joga a favor da saúde, mas, do outro lado, o mercado entendeu como um lance de lucros.
Avistou-se uma “oportunidade de negócio", diz. "Percebeu-se que há uma população que está cada vez mais idosa a precisar deste tipo de aparelhos e há quem não tenha em consideração a qualidade, nem todos os procedimentos”, indica Rita Pinho Rodrigues.
“O primeiro sítio a ir é ao médico de família e ao otorrinolaringologista para recomendar, em função da patologia, se [e qual] aparelho faz sentido ou não”, alerta a diretora da Deco. Rita Pinho Rodrigues diz que o trajeto tem de ser contrário: os consumidores devem procurar uma avaliação médica, antes de encomendarem um aparelho. Evita-se que o paciente seja atendido por “um simples técnico de bata branca ou pelo técnico da prótese".
Maria das Dores, 75, ao lado da amiga Almira Marinho, 79, recua no tempo. “Comecei a namorar e a minha mãe não queria." Foi “refilona”. “Não me deixas a bem, deixas a mal." Deu-me um estalo, ouvi um zumbido e até hoje não ouço deste lado”, conta.
Tinha 17 anos e começou a não se dar lá muito bem com o ouvido esquerdo. Ficou a saber numa avaliação hospital que nunca mais ouviria daquele lado.
“Este ouvido morreu”, mas muitos “habilidosos” continuam a querer lhe vender aparelhos há mais de 50 anos, principalmente, amplificadores auditivos - equipamentos sem finalidade médica. “Andam p’raí umas publicidades...”, comenta.
Os amplificadores auditivos são uma espécie de pequenas colunas que se carregam encaixadas ou atrás da orelha, ampliando o som na totalidade e não as exatas frequências e intensidades de som realmente precisas. Isto significa que todos os sons que a pessoa ouve e não ouve bem vão ser reproduzidos “em voz alta” perto da orelha.
“É um produto fronteira”, esclarece à Renascença a Autoridade do Medicamento (INFARMED) e, por isso, “não recaí nas nossas competências."
“Não são, na maioria das situações, os mais indicados”, clarifica o audiologista Jorge Humberto Martins, avisando que podem causar desconforto. Este tipo de “desinformação” é, para o audiologista, apresentado até nas televisões como um "milagre auditivo".
“Um rosto conhecido que dá a sensação de que não ouve nada, mete o aparelho e passa a ouvir... é quase um sonho, não é?”, conta a representante da Deco PROTeste. Desnorteados e impotentes quando não resulta tal como é vendido nos anúncios, partilham as queixas a pensar: “estou sozinho e enganado”, porque “aquilo dá para umas horas e acabou”, reforça Maria das Dores.
“Quando está a dar aquele reclame na televisão que ele mete aquele aparelhozinho... Sou tão revoltada contra aquele reclame que nem imagina...”, solta Teresa Pinto do Santos, 87. É o pior momento para Teresa durante os programas da manhã. “Detesto aquele reclame, porque é uma mentira que estão a apresentar ao público”, desabafa.
É por estas e por outras que Maria das Dores concorda com Teresa. “A audição é um negócio, porque, se reparar, todos os canais têm publicidade dos aparelhómetros e até são capazes de dar, sei lá, no mesmo canal três e quatro vezes por dia." “Como muitas outras coisas”, riposta a amiga Almira. “Mas no que diz respeito à audição é uma publicidade maluca."
Os especialistas miram a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) como responsável pelas pontas soltas. Consultas feitas por pessoas não credenciadas e erros nos rastreios auditivos, conhecidos como audiogramas são as principais reivindicações dos especialistas e dos doentes.
Estão em acordo que os audiologistas, a par dos otorrinolaringologistas, são os especialistas indicados para fazer os exames diagnóstico, mas os especialistas garantem que isso nem sempre acontece.
“Para eles, a venda pode ser para qualquer um”, acusa o técnico de audiologia Jorge Humberto Martins. O ex-presidente da Associação Portuguesa de Audiologistas declara que, em reuniões com a ERS, já tinha percebido a posição da entidade sobre a comercialização destes produtos.
“Só que não estamos a falar de uma venda. Este é um processo de reabilitação que deve ter responsabilidade, ética e princípios básicos a cumprir de seriedade, porque se não estamos a falar de vendedores e não de profissionais de saúde”, atira.
“Um rosto conhecido que dá a sensação de que não ouve nada, mete o aparelho e passa a ouvir... é quase um sonho, não é?”
A entidade reagiu às denúncias médicas e defende-se no que a lei define ser as suas competências de regulação, sem deixar de confirmar que existem centros auditivos sem as condições necessárias.
“Quanto à matéria de rastreios auditivos, têm chegado várias denúncias, alertando para a proliferação de entidades que promovem campanhas publicitárias para venda de aparelhos auditivos e prestam serviços de audiologia sem reunir os requisitos legais para o efeito, sem se encontrarem registados na ERS e sem possuírem profissionais devidamente habilitados”, reconhece a ERS à Renascença.
Sem adiantar números de queixas, a ERS garante que estes desvios confrontam-se com "processos de investigação e ações de fiscalização".
A ERS está encarregue pelos rastreios nestes estabelecimentos, mas empurra a questão da venda para o INFARMED como “entidade competente por regular a comercialização de aparelhos auditivos."
A Renascença remeteu um conjunto de questões para saber se verificaram esta situação, qual é o policiamento destes centros auditivos, qual é o prazo de manutenção destes dispositivos médicos e quais as comparticipações sociais que existem, entre outras. O INFARMED pretendeu apenas esclarecer a distinção entre a expressão comumente utilizada de "aparelhos auditivos", que são dispositivos médicos, e amplificadores auditivos.
O INFARMED trata de “regular e fiscalizar os dispositivos médicos colocados no mercado, segundo os mais elevados padrões de proteção de saúde pública, e de garantir o acesso com adequado desempenho." Isto é, a Autoridade Nacional do Medicamento contraria a ideia da ERS e clarifica que apenas regula as tecnologias médicas, não participando nos processos seguintes. Por isso, segundo o instituto, esta situação não depende em nada do INFARMED.
Mas quem toma conta do momento de venda? Há uma área sem regulamentação, acreditam os especialistas. A partir do momento em que o doente sai do gabinete onde foi avaliado, por um profissional ou não, não há qualquer vigilância.
Nem a ERS nem o INFARMED assumem esta área cinzenta. Sem regras claras nem vigilância, ninguém se responsabiliza pela comercialização destes dispositivos médicos e a população idosa acaba por ser mais vulnerável aos esquemas.
“Há um vazio”, denuncia Jorge Humberto Martins. “Não está preto no branco na legislação e aproveitam-se desta margem de manobra." Cria-se uma confusão ainda maior quando entram os audioprotesistas no baralho de médicos que cuidam dos ouvidos portugueses.
Com uma pasta restringida, o audioprotesista é designado à aplicação e programação da prótese e, por vezes, estende o seu trabalho ao papel de audiologista ou otorrino, examinando os doentes ilegalmente. “Mas a questão é: 'Estão a fazer exames audiológicos para diagnóstico? Então não podem'. 'Estão a adaptar aparelhos? Então já podem'. Isto é pelo menos nebuloso”, condena o audiologista.
“Falta claramente uma legislação”, lamenta. “Estamos preocupados com uma questão laboral” para manter estes trabalhadores empregados ou outros quaisquer sem formação, “mas não com uma questão de saúde e com a população que fica mal assistida”.
A solução? “Dificilmente vamos ter, a não ser que sejam apanhados em flagrante delito a fazer um audiograma”, diz o Jorge Humberto Martins.
Presa num mercado desregulado e sem fiscalização eficaz, a saúde auditiva é desclassificada perante as outras especialidades aos olhos destes médicos. Para Jorge Humberto Martins, há uma “dualidade de critério”: a especialidade sempre foi reprovada a ter a própria ordem profissional. Com um poder “muito pequeno” sobre a entidade legislativa, “só nos leva a crer que, do ponto de vista legislativo, estamos bem... É ironia minha, claro”, satiriza.
É preciso descomplicar os caminhos para aparelhar os ouvidos. “Aquela pessoa que o está a abordar na rua - por muito bem-intencionada que esteja, por muito simpática e bem vestida, por muito credível que esteja de bata branca - está a abordar para fazer negócio”, avisa à Renascença a diretora de comunicação e relações institucionais da Deco, Rita Pinho Rodrigues.
“Que não pague o justo pelo pecador." Não é uma realidade geral a todos os centros, garante. “Dizer 'toda e qualquer empresa que venda aparelhos auditivos é pouca séria ou é burlona' também não é correto”, esclarece.
Os estudos da Deco indicam a urgência de cultivar uma maior consciência e literacia em saúde para compreender os sinais de alerta, já que é uma “responsabilidade partilhada e não se pode apontar o dedo apenas a um destinatário”.
“É muito fácil pôr o peso sobre os médicos de família e farmacêuticos, mas são eles que têm o primeiro contacto e devem encaminhar para uma consulta de especialidade”, menciona Rita Pinho Rodrigues.
“Não podemos ficar à espera de que o doente vá aos cuidados de saúde primários para ir pedir um papel ao médico de família”, concorda o otorrinolaringologista Pedro Escada, relembrando que estas “burocracias” e “preocupações excessivamente administrativas” alavancam o desgaste da vitalidade dos doentes. “Parece-me ridículo."
“Aquela pessoa que o está a abordar na rua - por muito simpática e credível que esteja de bata branca - está a abordar para fazer negócio”
O correio da Deco enche-se de reclamações sobre incongruências e falhas no tempo de consulta. Enquanto não se ultrapassam, a associação tem publicado recomendações para que “o consumidor seja o primeiro a colocar o travão”, prevenindo situações graves. Para além do clássico “se me está a ouvir levante o dedo”, o especialista deve ter em conta um conjunto de requisitos.
“As ajudas são, às vezes, desconhecidas dos consumidores”, lamenta Rita Pinho Rodrigues. Sem compromissos, o paciente deve procurar saber, com dois ou mais orçamentos em mão, os apoios da Segurança Social e a dedução dos gastos no IRS, conseguindo fugir a créditos para não “ficar sem dinheiro e sem ouvir”.
Cliente ou doente? Saúde ou comércio? Fechar a porta a confusões e desinformações acaba por ser, aos olhos dos especialistas, uma tarefa difícil. A informação disponível nos portais online do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros organismos pode ser insuficiente.
“Não podemos ter um polícia em cada esquina”, adverte à Renascença a diretora de comunicação e relações institucionais da Deco.
"Não é uma terra sem regulamentação”, mas “tem de haver uma intervenção mais musculada da ERS com sanções que sejam suficientemente persuasivas para evitar que quem esteja a prevaricar não o continue a fazer."
A Deco reporta este “desvio de mercado” como uma “falta de honestidade”. Se as entidades “não andarem em cima” destas situações, a consequência é um desrespeito ao consumidor, promovendo ainda a desconsideração e desconfiança no trabalho dos especialistas e nos dispositivos médicos acertados.
“O descrédito ainda é grande e o nosso trabalho enquanto profissionais de saúde é desmontar toda esta história negativa que existe à volta das próteses auditivas para depois começar a trabalhar”, expõe Jorge Humberto Martins.
Hesitantes, alguns doentes têm maus resultados ou ouvem as más experiências da família ou vizinhança e desistem. “Ficam desconfiados de qualquer pessoa que lhes vá falar de aparelhos auditivos”, acrescenta o otorrino Pedro Escada.
“O principal fator de mobilização e decisão para o poder político são as associações como a OUVIR que são parte interessada e lesada ao mesmo tempo”, diz o audiologista Jorge Humberto Martins. “Têm feito um bom trabalho e têm uma quota muito importante no nosso sucesso."
Em conjunto com a comunidade médica, a OUVIR promove a informação da população portadora ou não de deficiência auditiva, encaminhando pacientes desde 2011.
“Como pessoa com deficiência auditiva, temos de defender a nossa causa”, sustenta o presidente António Ricardo Miranda, 45, preparando os “pouco mais de cem sócios” para saber identificar e recorrer aos “profissionais corretos”. “Não é vender por vender."
O preço é a maior preocupação que a associação testemunha, mas o presidente vai relembrando para não meter os olhos no que é mais barato. Mais vale investir, mas sempre à espreita e prestar atenção a indevidas extrapolações de preços. “É como ter um Ferrari dentro do corpo. É uma coisa caríssima e que exige muita manutenção."
“Há muito mais a fazer pela saúde auditiva”, remata o presidente da OUVIR.
“Não nos podemos esquecer de que estamos a falar de saúde”, reforça Rita Pinho Rodrigues. Sem esquecer que estes equipamentos “não são meros acessórios de beleza”, o terapeuta da fala Pedro Brás Silva recorda que ouvir bem é um direito, porque, “na verdade, a saúde auditiva é uma questão de todos”.